Incerteza ambulante ou ambivalente excentricidade? III

Na Suécia, Fernando Gabeira recebeu o amparo da Anistia Internacional, chegando ali nos dias invernais de 1973-74, apenas com uma calça jeans, camiseta e um casaco leve.

Logo receberia dinheiro para as primeiras despesas, vestuário compatível com o frio, e uma residência universitária de dezessete metros quadrados em Estocolmo. Depois arranjaria emprego desfrutando de companhias agradáveis com operários, em sonhos de gozo de férias no Algarve, muito longe, no extremo ocidental de Sagres, em Portugal, onde o nórdico imagina poder esquentar a pele, e degustar outro tipo de bacalhau.

Deleites à parte, na Suécia não havia desabastecimento como em Cuba, nem privação alimentar como na embaixada da Argentina em Santiago do Chile. Em Estocolmo, Gabeira podia se dar ao luxo de até adquirir feijão preto brasileiro para desfrutar feijoadas com amigos.

Terrível para ele fora constatar que o Sueco, “materialmente satisfeito, perdera o sentido da vida”, o suicídio sendo um fato rotineiro, uma infelicidade incompreensível. Seria o autocídio um subproduto do fastígio econômico, da vida em conforto e despreocupação?

No seu entorno algumas preocupações de ordem ideológica: “E se a classe operária não for nada disso que se pensa dela?” Pergunta-lhe alguém que sente a própria luta equivocada, debruçado sobre o livro de Marx: “Se for assim, eu me suicido”!

Se o momento não é ainda de autocrítica, alguns companheiros desistem da vida operária. Preferem outros degustes em Paris, onde o clima é ameno e a cozinha bem melhor.

Na superfície, a “história caminhava sob a inspiração de Karl Marx. Perdera-se uma batalha, não a guerra”.

O giroscópio pode arremeter, arrevesar, arrufar, retroagir, reinventar. Agora o sábio da moda é Antônio Gramsci, tão brando quão delicado e inútil, denunciando o meio religioso do marxiano pensar: “O reino de Deus está sempre próximo depois de cruzarmos o vale de lágrimas”.

Vale de lágrimas? Pergunta o vulgo e o vago: A qui? A quo? Ad quem? O momento é o da contracultura hippie, com cabelos em desgrenho, bigode vassoural e fumos negros de cigarros Gauloises.

A novidade é um movimento por alimentos saudáveis.

Se jaz debalde a luta contra o capitalismo por hedonismo de bens e confortos, tenta-se ressuscitar, com edulcoração e reformulação de novo esmalte, a velha contraposição regressiva, sempre contra o capital, a modernização do agronegócio, a mecanização da lavoura, a seleção de sementes, e, sobretudo, a utilização da química no combate às pragas da agricultura.

Era a perspectiva de outro bailado, em balanceio de novo compasso, marcando o traço, e armando o novo passo, a espera do estardalhaço ocasional, no mesmo viés radical, por delirante e exaltado.

Acontece que em Gabeira não vige nem o santo louco, o eremita afeito a jejuns, abstinências e flagelações cilicias, muito menos o idealista romântico. Tudo nele é estudado. Faz parte de uma luta, uma missão. Uma missão que seria notável, se assim fosse a de servir e alertar, apenas. No entanto o seu objetivo é liderar a horda maciça dos descabeçados, daqueles que ouvem o galo cantar, e o seguem.

Mas, a despeito de suas escolhas aleatórias, ninguém lhe poderá acusar de alucinação ou paranoia. Malucos são os que o veem como um norte a seguir, um mito a admirar e um caminho a perseguir.

Porque no viver de Gabeira há mais descaminhos e dúvidas, do que coerência nas suas escolhas. Alguém que ousa experimentar de tudo sem escolher nada, como se fora uma metamorfose ambulante, só para usar uma frase repetida por desvairada idiotia, não pode se constituir arrimo ou suporte.

Isso, porém, seria verdadeiro, não fosse o seu interesse de galgar posições de mando, para exercitar o próprio desmando enquanto precessão de ocasião.

Assim, depois de vagar por toda a Europa, eis que o tempo passa, as paixões arrefecem, e um governo novo assume no Brasil, o do Presidente Ernesto Geisel, promovendo a “abertura lenta, gradual e segura”, controlando os radicais de todos os naipes; os bobos da esquerda festiva, e os capazes de tudo na reação, por perigosos, violentos e atrabiliários.

Vencidos todos os óbices, como tudo nesse nosso país, desde a independência, república e outras evoluções políticas, é aprovada a Anistia Ampla Geral e Irrestrita, mediante consentimento tácito do príncipe de plantão.

E assim eis Fernando Gabeira de volta ao Brasil, já provocando polêmicas.

Provocou protestos com o uso de sunga na praia de Ipanema. Se pudesse nadaria nu, como era seu costume nas praias da Grécia. A sunga, porém, insinuava querências homossexuais. E homem que é homem não gostava de gay, ainda.

Eis então uma nova causa a lutar; o amor livre à causa homossexual. “Não podemos esperar setenta anos por um orgasmo”, verbera na revista “Lampião”, o sugestivo título do primeiro jornal gay do Brasil.

Se na Suécia nunca trabalhara com o intelecto e se servira das mãos para faxinar hospitais e cotar gramas de cemitérios, no retorno ao Brasil, uma longa viagem turística de Porto Seguro, Alcântara, Jericoquara, bancada pelos direitos autorais do best-seller, “O que é isso, companheiro?”, lhe rendeu um jipe em passeio Brasil a fora.

Insere-se na campanha das Diretas Já, o maior movimento popular de alucinação coletiva. O Brasil iria mudar com eleições diretas para Presidente da República, reunindo no mesmo palanque Tancredo Neves, Fernando Collor, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Fafá de Belém e outros menores.

O movimento das Diretas morreu. O Congresso não se submeteu ao grito das ruas. Tancredo e Sarney se elegem indiretamente Presidente e Vice, Tancredo morre e Sarney assume.

Logo viria uma nova luta: O Presidente Sarney, atendendo um pedido de sua mãe, Dona Kiola, vetara a exibição do filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, suprema heresia aos adeptos da célebre frase das calçadas parisienses de 1968: “Il est interdit d'interdire !” É proibido proibir!

O filme, cujo título deveria ser “Ave Maria”, provocava agitações radicais. Inspirado numa ficção confusa o filme posava de arte engajada tendo Jesus, Maria e José, uma família não muito sagrada, por modernidade e vícios incompatíveis como o pensar religioso de muitas pessoas.

É sempre assim no descortinar da vida. Muitos entendem que a arte não pode ser contida por quaisquer concepções e crenças, e assim tudo é lícito, no assaque moral aos vivos e os mortos, tudo por acolhimento pleno da liberdade de expressão.

A proibição de “Je vous salue, Marie”, foi a notícia mais importante em cafés e bares. Hoje o filme se encontra entre poeiras e pucumãs nas locadoras de fitas, em esquecimento e abandono, por arte medíocre de baixa compreensão.

Mas, se a compreensão do filme foi exígua, serviu a Gabeira para a notoriedade desejada.

Não fora possível liderar uma revolta como aquela da vacina, no início do século, contra Oswaldo Cruz e a Febre Amarela.

Sarney, velha raposa, liberou a fita e o cacarejo perdeu seu fautor e realejo.

Cantando em outra freguesia, Gabeira seria candidato a Governador do Rio de Janeiro em 1986 e a Presidente da República em 1989. Em ambos os casos, queria se eleger só por discurso, sem possuir no Parlamento, nem o aval da minoria.

À Presidência da República elegeu-se Collor, com muitos votos, mas igualmente sem um partido forte no Congresso, para lhe dar a necessária governabilidade, tanto que, às primeiras denúncias e insatisfações, o barco de modernidade liberal naufragou e o “Caçador de Marajás” foi derrubado.

Gabeira seria Deputado Federal por dezesseis anos, sempre tentando ser Prefeito carioca ou governador do Rio de Janeiro.

De sua luta política, temas ambientalistas norteados num conservacionismo, obscuro avesso ao desenvolvimento e à criação de riqueza, indiferente a necessidade maior da humanidade; alimentos, energia e oportunidades de trabalho.

Destaque-lhe a ação contra o Presidente da Câmara de Deputados, Severino Cavalcanti, entronizado e derrubado pelo “baixo clero” daquela casa, onde Gabeira fustigou a obra, sem fulminar seu criador.

Pergunta então o livro, enquanto título: “Onde está tudo aquilo agora?” E eu não encontro, como leitor, sua resposta.

Afirma, em epílogo, continuar atento à política, escrevendo sobre ela no Estado de São Paulo e pilotando uma motoneta no trânsito caótico paulistano.

Se vê o cinismo dos políticos em tantos escândalos, Gabeira não se denuncia enojado e decepcionado em saber tais desmandos da responsabilidade de velhos companheiros de jornada.

Sobre o processo de degradação moral, ambiental e político, afirma que “chegou a um ponto que se tornou difícil, quase impossível, combatê-lo por dentro”.

Estará Gabeira ruminando uma nova investida de derrubada do sistema, de fora para dentro?

“É preciso aprender como os tuaregues a atravessar o deserto apenas com um copo d’água,… como fora no exílio e que será sempre assim sob o confortável teto da democracia”.

No máximo em análise de tempos idos e não esquecidos dirá ainda: “Nos informes comunistas, do século passado, havia sempre uma frase que dizia: ‘A realidade confirmou nossas análises’. Comigo foi diferente. A realidade quase sempre me escapou, mas não desistirei de me reconciliar com ela. Nem de ajudar a mudá-la quando possível. Espero não me bater contra moinhos de vento. Mas não posso dar nenhuma garantia. A realidade é imutável como pluma ao vento”.

Imprevisível como sólido desmanchando-se no ar, de Gabeira não se pode esperar uma natureza lógica em golpe de escorpião. Imutável é a sua incerteza ambulante e excentricidade ambivalente.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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