Inconsistências do Ativismo Judicial na Política

Em 2007, Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal, em sucessivos julgamentos e decisões, impuseram, em nome da aplicação de princípios constitucionais, a fidelidade partidária, mesmo ausente norma expressa da constituição que determinasse a perda de mandato do “trânsfuga” ou “desertor” (termos utilizados pelo STF e pelo TSE). É que a fidelidade partidária foi compreendida como presente na Constituição a partir dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, da soberania popular e da sistemática constitucional de representação popular indispensavelmente por meio de partidos políticos (a filiação partidária é condição de elegibilidade para qualquer cargo eletivo).

Não obstante o aplauso que essas decisões judiciais obtiveram da sociedade, indignada com o constante troca-troca partidário que sempre favoreceu as práticas fisiológicas, o fato é que essa imposição judicial da fidelidade partidária desde sempre mostrou ser um caminho complexo, delicado e com muitas insuficiências.

Isso porque, ao decidir que o partido político possui o direito de manter o mandato conquistado nas urnas na hipótese de desfiliação partidária do “trânsfuga” ou “desertor”, o fato é que o STF definiu também que: a) embora os partidos políticos sejam os verdadeiros titulares dos mencionados mandatos parlamentares, admitem-se situações que justificam a mudança de filiação partidária sem prejuízo do mandato parlamentar, a exemplo de comprovada perseguição política e mudança significativa de orientação programática do partido (seriam hipóteses de “justa causa” para desfiliação partidária sem perda do mandato); b) caberia ao Tribunal Superior Eleitoral estabelecer, por meio de resolução específica, o regramento através do qual seria possível ao parlamentar ou ao partido político exercerem sua ampla defesa, a fim de justificar a desfiliação partidária ou de reivindicar a titularidade do mandato. Nesse sentido, caberia à Justiça Eleitoral apreciar, em última análise, a procedência ou não das justificativas apresentadas, em processo administrativo eleitoral.

E aí estamos diante de uma primeira insuficiência da imposição judicial da fidelidade partidária.
A admissão de um processo administrativo de competência da Justiça Eleitoral – mediante o qual é possível ao “desertor” ou “trânsfuga” justificar a desfiliação partidária e preservar o mandato – representa uma perigosa agudização da cada vez mais contemporânea tendência da chamada judicialização da política.
É verdade que em todo o mundo o Poder Judiciário assumiu, na contemporaneidade, papel de protagonista das relações sociais e mesmo políticas. Entretanto, é temerário entregar ao Poder Judiciário a missão de decidir se determinado partido político descumpriu o seu programa partidário ou mudou significativamente a sua orientação programática, se se comportou de modo a perseguir ou constranger indevidamente um de seus filiados. O Poder Judiciário não pode se transformar no guardião paternalista da sociedade. Cabe ao povo-eleitor-soberano, em última análise, avaliar o comportamento dos seus representantes (partidos e políticos) no exercício das tarefas políticas, avaliar a fidelidade de tais representantes aos propósitos difundidos em campanha eleitoral e em seus programas partidários.

Transferir essa tarefa ao Poder Judiciário é transferir tarefa originariamente pertencente ao povo, com prejuízo do amadurecimento da democracia. Com esse tipo de tutela judicial, é mais difícil o processo de conscientização popular que habilite o cidadão-eleitor a democraticamente exigir fidelidade dos partidos políticos às suas orientações programáticas e às suas plataformas eleitorais.  Ou seja: fica mais difícil o aprendizado democrático rumo ao efetivo respeito à prevalência da vontade soberana do povo, titular de todo o poder.

Mas não é só.

A regulamentação da matéria pelo TSE foi além do que fixado no julgamento do STF. Ao aprovar a Resolução n° 22.610, o TSE incluiu, além da grave discriminação pessoal e mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, duas outras situações de “justa causa” para desfiliação partidária: incorporação ou fusão de partido e criação de novo partido.

Em nenhum momento o STF havia sequer mencionado essas hipóteses. O TSE agiu como legislador positivo, inovando a ordem jurídica e avocando para si a tarefa de facilitar o que entendeu ser uma necessidade de reforma partidária no Brasil, como se uma reforma partidária pudesse ocorrer de cima pra baixo, por ordem judicial.

Essa possibilidade – ultra-ativista – prevista no inciso II do § 1° do Art. 1° da Resolução TSE n° 22.610, abriu a janela que os políticos já perceberam para mudar de partido sem perder o mandato. Quando circunstâncias políticas, as mais das vezes fisiológicas e não programáticas, fazem com que se torne “imperiosa” a mudança de partido, então a “chave” já está descoberta: cria-se um novo partido político.  A criação do PSD foi exemplo desse fenômeno: esse novo partido, criado a partir sabe-se lá de qual linha programática ou ideológica, já surgiu grande, pois políticos dos mais diversos partidos – inclusive com mandatos parlamentares em todas as esferas federativas e de linhas de atuação as mais diversas e até mesmo opostas – a ele aderiram como forma encontrada para mudar de partido sem perder seus mandatos, fazendo de sua bancada na Câmara dos Deputados a quarta mais numerosa. A senha está dada, então, para burlar a fidelidade partidária com base em regulamentação da matéria admitida pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral.

Pois bem. na última semana do mês de junho deste ano de 2012, o STF se deparou com mais um problema gerado pelo ativismo judicial na política partidária.

Isso porque, após criado em 2011, o PSD reivindicava ter acesso à propaganda eleitoral no rádio e na televisão para as eleições de 2012, proporcional ao tamanho de sua bancada na Câmara dos Deputados, formada por parlamentares que foram eleitos em 2010 por outros partidos e que migraram para o PSD, sem perder o mandato, porque a criação de novo partido consta na Resolução n° 22.610 do TSE como situação de “justa causa”.

O obstáculo: a Lei das Eleições (Lei n° 9.504/97) estabelece claramente que a distribuição de 2/3 do tempo destinado aos partidos políticos na propaganda eleitoral no rádio e na televisão deve observar a proporção da representação de cada partido na Câmara dos Deputados resultante da eleição (Art. 47, § 2°, inciso II e § 3°). Mas o PSD não participou, por óbvio, da eleição de 2010, porque naquele ano o PSD não existia.

A seguir estritamente os termos da Lei n° 9.504/97, nessas eleições de 2012 o PSD teria apenas o horário que é reservado igualitariamente a todos os partidos (um terço do tempo total, a ser repartido igualitariamente por todos os partidos que disputam a eleição).

Eis o imbróglio. Foi a Justiça Eleitoral (TSE) que por meio de resolução admitiu expressamente – a nosso ver, de modo ultra-ativista – que a criação de novo partido político é uma das situações de justa causa para desfiliação partidária. Assim, antecipadamente estabeleceu como legítimas as desfiliações de vários deputados que foram eleitos por outros partidos e que se filiaram ao PSD, com o que mantiveram os seus mandatos. Vários cidadãos se filiaram ao PSD na expectativa de que esse novo partido, que já nasceu grande, com a quarta maior bancada na Câmara dos Deputados, refletisse no horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão o “legítimo” tamanho que passou a ter. Mas como garantir isso, diante do claro e incisivo teor do comando legal do § 3° do Art. 47 da Lei das Eleições: “Para efeito do disposto neste artigo, a representação de cada partido na Câmara dos Deputados é a resultante da eleição” ?

Nada que mais uma “interpretação conforme a Constituição” – que nesse caso foi em boa verdade uma “interpretação conforme a necessidade de dar coerência às inovações judiciais na regulamentação da fidelidade partidária e justa causa para desfiliação sem perda do mandato” – não pudesse resolver. E assim foi feito. O STF, vencida a Ministra Carmen Lúcia, decidiu conferir uma “interpretação conforme a Constituição” para que os dispositivos da Lei das Eleições sejam “interpretados” de modo a admitir que os partidos políticos fundados após as últimas eleições para a Câmara dos Deputados possam partilhar da repartição da parcela de 2/3 do tempo de propaganda eleitoral proporcional à participação parlamentar dos partidos (ADI 4795).

Interpretação conforme a Constituição? Mas não foi o mesmo STF que decidiu (interpretando a Constituição), em 2007, que a Constituição assegura que o mandato parlamentar é do partido político que o conquistou na eleição? O PSD não conquistou mandato algum na eleição de 2010 porque não existia. Conquistou, sim, a adesão de diversos deputados federais que foram eleitos, aí sim, por outros partidos políticos que conquistaram esses mandatos na eleição de 2010, e que perderam, sem qualquer justificativa razoável, essa representação.

A essa altura, podemos concluir que muito provavelmente é no campo da judicialização da política partidária que o tão recente quanto intenso ativismo judicial brasileiro tem praticado as maiores trapalhadas, uma atrás da outra, com fundamento em supostas equidistância e superioridade moral capazes de impor aos políticos e à própria sociedade a tutela absoluta da cidadania.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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