O desatino do ex-coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Antônio Natalino Manta Dantas, que justificou o baixo rendimento dos alunos no Enade como conseqüência do “baixo Q.I. [Quociente de Inteligência] dos baianos”, reacendeu — se é que um dia esteve apagado — o debate sobre a indolência dos nossos vizinhos. “O baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais, não conseguiria”, disse o boca-rota, acrescentando que berimbau é instrumento de quem tem “problemas cognitivos”. Um evidente preconceito, claro, a julgar pela vasta cultura baiana, inclusive a musical. O debate não é novo. Em maio de 1995, o jornalista que assina esta coluna escreveu uma reportagem no jornal A Tarde, de Salvador, com o título que vai acima. A palavra indolência também se aplica a descuido, desleixo, negligência — o que é tradicional e preconceituosamente mais associado ao baiano do que o baixo Q.I.
Mas o baiano é preguiçoso? Permanentemente bombardeado pelas redes de comunicação do Rio de Janeiro e de São Paulo com a folclorização da Bahia como sendo a terra do eterno lazer, do ritmo lento e do desfrute, até mesmo o baiano fica confuso antes de conseguir dar resposta à indagação. Depois de refletir, dificilmente alguém dirá que sim. E, de fato, o baiano é um povo trabalhador. Segundo o IBGE, quase tanto quanto o paulista e mais do que a média do Rio ou da região Nordeste. A apregoada indolência do baiano é puro racismo, garantia a socióloga Nadya Araújo Castro, doutora pela Universidade Nacional do México e professora da UFBA.
“O mito da sociedade do lazer é irmão de sangue, sem dúvida, do preconceito racial: numa terra de negros e mestiços, a indolência deste daria o tom e o andamento à sociedade local. Ouso dizer que isso não é verdade”, estabelecia a socióloga, argumentando que na Região Metropolitana de Salvador são exatamente os negros aqueles que apresentam as maiores taxas de participação no mercado de trabalho. No entanto, a eles é reservada e fatia mais rejeitada do mercado. “Os brancos podem se dar ao luxo de retirar-se do mercado de trabalho, preterindo condições de trabalho adversas. Ou aviltantes. Para os negros e mulatos a sobrevivência é indissociável do trabalho, qualquer que seja”.
A reportagem mostrou que um homem maduro, negro e desempregado, que sustentava a família vendendo jaca e que, diariamente, às 7 horas, saía de casa, na avenida Vasco da Gama, e empurrava um carrinho de mão até o Mercado Modelo, para vender a fruta ajudava a engordar outra estatística do IBGE: na Bahia, as taxas de atividade da população adulta também são mais altas que, por exemplo, as do Rio (56,7% contra 53,9%, em média). Entre os estados da região Sudeste, apenas São Paulo supera o desempenho baiano. “É uma gente que trabalha muito”, garantia o vendedor de jaca.
E o povo baiano ingressa mais cedo no mercado de trabalho. “Aqui, as crianças e adolescentes contribuem com 30% do rendimento médio de suas famílias. Se essa não é certamente uma estatística da qual devamos nos orgulhar, serve para desestabilizar a crença na pouca afeição do baiano pelo trabalho”, ponderava Nadya Castro, lembrando, ainda de acordo com o IBGE, que as crianças baianas com idade entre 10 e 13 anos trabalham três vezes mais do que as do Rio e duas vezes mais do que as de São Paulo.
FALANDO SÉRIO, O HUMORISTA JUCA CHAVES também concordou com a capacidade do baiano para o trabalho, ressalvando que a carência é de educação. “Baiano não é preguiçoso. É incompetente”, provocava, com sinceridade, justificando: “A obra aqui é torta. No Sul, é mais linear”. A socióloga Nadya Castro associava a falta de cultura escolar à insipiência do mercado de trabalho formal, que se retraiu ainda mais nas últimas duas décadas. Depois do boom da indústria petrolífera e, posteriormente, da petroquímica, veio a redução drástica da força de trabalho. Quem conseguiu se manter empregado tampouco pôde recuperar os salários relativos que haviam recebido e, hoje, mais baianos encontram a sua sobrevivência em atividades precárias e desprotegidas. “Somos persistentemente campeões nas taxas de desemprego e, sobretudo, de subemprego entre as grandes regiões metropolitanas do Brasil”, recordava.
É por isso que, na Bahia, se começa a trabalhar tão cedo, o que conseqüentemente reflete no acesso, permanência e desempenho na escola. Mas Nadya Castro advertia para outro problema, racial: desde o ingresso no mercado de trabalho, as diferenças raciais começam a ser decisivas. “Entre as crianças e adolescentes que não estudam porque trabalham, ou que estudam e trabalham simultaneamente predominam os de cor preta e parda, sendo o número destes quatro vezes maior que o número dos de cor branca”. Em Salvador, uma em cada cinco crianças negras na faixa de
Dessa forma, a socióloga concluía que é inconseqüente a associação da Bahia, em geral, e de Salvador, em especial, à idéia da negritude, da simbologia da cultura negra e das práticas afro-brasileiras. “Essa aparente assimilação existente entre baianidade e negritude não tem qualquer vigência no que diz respeito às condições de sobrevivência”, dizia. “Diferenças marcantes separam o ‘mundo dos negros’, onde estão os pretos e os mestiços pobres, e o ‘mundo dos brancos’, onde estão os brancos, os mestiços ricos, afluentes ou em mobilidade social”.
“SOFRE MAS SE DIVERTE” — O presidente da Federação do Comércio do Estado da Bahia, Nélson Daiha, dizia que os baianos que se destacam pelo mundo afora são o melhor exemplo de quão é um povo trabalhador, lembrando não ser à toa que a Bahia é um dos estados mais prósperos do país. O sindicalista Álvaro Gomes, presidente do Sindicato dos Bancários, afirmava que o baiano trabalha tanto, ou mais, quanto o trabalhador de qualquer outra parte. “A diferença é que o baiano não é uma máquina. Ele trabalha, sofre, mas se diverte, procura ser alegre”, analisava, interpretando uma tese popular. Para a socióloga Nadya Castro, o baiano mais trabalha que se diverte. “Não é à toa que as taxas de participação no mercado de trabalho em Salvador aumentam exatamente no verão de festas, quando o visitante e os meios de comunicação apenas vêem o desfrute, o deleite”, observava. Para ela, tampouco é casual que o deleite do visitante cada vez mais seja propiciado por uma complexa estrutura empresarial, que mobiliza centenas de milhares de ativos trabalhadores locais.
Mas a discriminação contra a mulher, notadamente da raça negra, parece ser maior do que a capacidade do baiano para o trabalho. A socióloga Nadya Castro afirmava que na Bahia, ainda majoritariamente, as mulheres sobrevivem em seus tradicionais guetos ocupacionais, nas chamadas profissões femininas — professoras, enfermeiras, manicures, cabeleireiras e empregadas domésticas. “É significativo e crescente na Bahia o número de famílias chefiadas por mulheres e são exatamente essas famílias as que alimentam os bolsões de miséria social no estado”, encerrava a pesquisadora.
Como se vê, simplificar uma tese taxando um povo de burro ou preguiçoso é uma questão de preconceito.