Inelegibilidade dos “Ficha-Suja” – Parte IV

Na quarta-feira da semana passada, o Supremo Tribunal, com composição integral (após a chegada, à Corte, do Ministro Luiz Fux), examinou a constitucionalidade da aplicação da Lei do “Ficha-Limpa” (Lei Complementar n° 135, de 04/06/2010, publicada no Diário Oficial na data de 07/06/2010) às eleições ocorridas no ano passado.

 

Como comentamos na segunda parte dessa série de artigos sobre a inelegibilidade dos “ficha-suja” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=99217&titulo=mauriciomonteiro), uma das diversas controvérsias que envolveram a aplicabilidade da mencionada lei complementar foi exatamente essa: a novidade legislativa poderia ser aplicada às eleições de outubro de 2010, ou apenas para as futuras eleições?

 

Essa controvérsia decorreu da previsão do Art. 16 da Constituição Federal, que prevê expressamente que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Como a publicação da nova lei ocorreu em período anterior a um ano das eleições de outubro, ficou a dúvida quanto à aplicabilidade de seus comandos já para as eleições de 2010.

 

Por seis votos a cinco, o STF decidiu, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 633703 – interposto pelo candidato a deputado estadual em Minas Gerais, Leonídio Correa Bouças, em face de decisão tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral (que decidira ser plenamente aplicável às eleições de 2010 a lei do “ficha-limpa”) – que a lei do “ficha-limpa” não se aplica à eleições de 2010, porque essa aplicação é vedada pelo Art. 16 da Constituição da República.

 

A maioria dos ministros do STF -maioria que se formou com a adesão do Ministro Luiz Fux ao entendimento já externado no ano passado pelos Ministros Cezar Peluzo, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Marco Aurélio e Dias Toffoli – decidiu que a lei do ficha-limpa versou, sim, normas sobre o processo eleitoral, incidindo no caso a proibição do Art. 16 da Constituição Federal.

 

Mais ainda, essa mesma maioria considerou que a norma do Art. 16 da Constituição é cláusula pétrea, sendo impossibilitada a sua abolição até mesmo por meio de emenda à constituição, sendo impossível que mera lei complementar frustre os seus comandos.

 

A minoria, formada pelos Ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Ellen Gracie, adotou o entendimento segundo o qual normas sobre inelegibilidade não tratam propriamente do processo eleitoral, não esbarrando portanto no obstáculo imposto pelo Art. 16 da Constituição à aplicação da lei do ficha-limpa às eleições de 2010; ademais, potencializaram o disposto no Art. 14, § 9°, norma constitucional que impõe a previsão, em lei complementar, de hipóteses de inelegibilidade fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato considerada a vida pregressa do candidato.

 

Penso que a controvérsia merecia outra solução; também senti falta de um debate mais aprofundado sobre a interpretação teleológica do Art. 16.

 

Isso porque, como já comentado na segunda parte dessa série de artigos, a norma do Art. 16 da Constituição Federal é norma que possui o claro objetivo de garantir segurança jurídica ao processo político-eleitoral, evitando a ocorrência de casuísmos eleitorais, realizáveis conjunturalmente por maiorias eventuais em proveito próprio.  Assim, as regras das eleições deverão estar definidas e serem do conhecimento de todos os envolvidos no processo com antecedência mínima de um ano, para que tenham tempo suficiente para as necessárias adaptações e preparações políticas, jurídicas, técnicas e operacionais, mas isso com vista a impedir que maiorias legislativas eventuais ou duradouras façam proveito dessa condição para mudar as regras do jogo às vésperas das eleições, com o claro propósito de benefício próprio e de prejuízo a correntes políticas de oposição ou eventualmente minoritárias.

 

Nesse sentido, aliás, já se posicionou o Ministro do STF, Celso de Mello:

 

O legislador constituinte, atendo à necessidade de coibir abusos e casuísmos descaracterizadores da normalidade ou da própria legitimidade do processo eleitoral, e sensível às inquietações da sociedade civil, preocupada e indignada com a deformante manipulação legislativa das regras eleitorais, em favor de correntes político-governamentais detentoras do poder, fez inscrever, no texto constante do art. 16 da nossa Carta Política, um postulado de irrecusável importância ético-jurídica. (voto no RE 129392).[1]

 

Não é o caso, porém, da lei de inelegibilidade dos “ficha-suja”. A sua aprovação não decorreu de um casuísmo golpista de maioria parlamentar em proveito próprio. Muito pelo contrário, a sua aprovação decorreu de formal iniciativa popular (a iniciativa da lei não foi parlamentar, mas sim direta do povo brasileiro, nos termos do § 1° do Art. 61 da Carta Política) e intensa mobilização social. O Congresso Nacional aprovou o projeto a reboque de intensa e legítima pressão da opinião pública, capitaneada por entidades representativas da sociedade civil. Aliás, o líder do Governo no Senado Federal – em momento de extrema infelicidade mas de rara sinceridade – chegou a declarar que a sua tramitação no Senado não era prioritária porque não se tratava de uma demanda do governo e sim de uma demanda da sociedade. Foi tragado pela mobilização popular, que levou-o e a todo o Senado a reconsiderar esse pensamento e agilizar a sua tramitação até aprovação final.

 

Logo, não há temor de que essa alteração do processo eleitoral traduza casuísmo golpista ou manobra reprovável a favor de determinada maioria política. Se dependesse exclusivamente da vontade política do Congresso Nacional, a novidade legislativa não seria aprovada. Do que se conclui, em interpretação teleológica, que não incide, aí, o comando do Art. 16 da Constituição Federal.

 

Como bem sintetizou o jornalista JÂNIO DE FREITAS, em sua coluna na Folha de São Paulo, na data de 25/03/2011:

 

A voz original da Constituição lhe foi dada pela Constituinte. Nenhum dos 11 ministros se referiu, porém, ao que a Constituinte achou necessário dizer com o intervalo de um ano entre a alteração da Lei Eleitoral e sua aplicação. Como ficou registrado nos anais, a razão do prazo foi a preocupação em proteger as eleições de arranjos de última hora, os casuísmos feitos para prejudicar determinados candidatos, ou correntes de ideias ou partidos em condições legítimas de concorrer.

Nada a ver, portanto, com prevalência do intervalo sobre as necessárias moralidade pessoal e probidade administrativa, e outras exigências. Mais: estávamos, então, apenas três anos e meio distantes do regime autoritário e ainda sob muitos dos seus rescaldos – condição bastante explicativa e que não deveria ser esquecida sempre que se considere o teor da Constituição.

 

Demais disso, essa novidade legislativa de iniciativa popular e intensa mobilização social – expletiva da mais legítima manifestação direta do exercício, pelo povo, de sua soberania – veio ao encontro de outro comando constitucional da maior importância: o do § 9° do Art. 14, que determina que a lei complementar deve estabelecer casos de inelegibilidades a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. Noutras palavras, essa iniciativa legislativa popular atendeu a uma convocação constitucional já presente desde 1994 (data em que foi aprovada pela revisão constitucional a atual redação do dispositivo do § 9° do Art. 14). Chegou tarde, portanto, mas não tão tarde que não pudesse ser aplicada já para as eleições de outubro de 2010.

 

Pena que o STF não tenha assim considerado. Pena que o STF pouco tenha examinado essa específica controvérsia à luz dessas considerações finalísticas do Art. 16 da Constituição da República. Resta continuar defendendo a sua constitucionalidade, para aplicação, ao menos, nas eleições futuras.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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