Inelegibilidade dos “Fichas-Suja” – Parte I

Nas colunas de 18/06/2008 e 25/06/2008 (há quase dois anos, portanto), efetuamos comentário, em duas partes, sobre o tema “Vida Pregressa e Registro de Candidatura”.[1]

 

Iniciamos aquele comentário com a seguinte indagação: “Candidato a cargo eletivo que tenha vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, ainda que não haja decisão judicial condenatória definitiva, pode ter o requerimento de registro de candidatura negado pela Justiça Eleitoral?”.

 

Explicamos então a oportunidade da abordagem: o Tribunal Superior Eleitoral acabara de enfrentar, mais uma vez, esse delicado tema. E o entendimento que mais uma vez prevalecera foi o de que era impossível à Justiça Eleitoral negar o registro de candidatura a cargo eletivo de pessoas sobre as quais não existam decisões judiciais condenatórias definitivas (transitadas em julgado), ainda que em nome da proteção à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, tendo em vista a vida pregressa do interessado.[2]

 

A matéria ainda foi examinada, no mesmo ano de 2008 (em 06 de agosto), pelo Supremo Tribunal Federal, que, apreciando a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 144, proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil em face da Lei Complementar n° 64/90 e de resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, julgou-a improcedente, para manter o entendimento firmado pelo TSE, vencidos apenas os Ministros Carlos Britto e Joaquim Barbosa.

 

O tema vinha sendo juridicamente equacionado à luz dos preceitos do § 9° do Art. 14 da Constituição Federal, da alínea “e” do inciso I do Art. 1° da Lei Complementar n° 64/90 e do inciso VII do Art. 5° da Constituição da República.

 

A Constituição Federal prevê, em seu Art. 14, § 9º:

 

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994). (grifou-se).

 

Para atender a esses objetivos indicados na norma constitucional acima transcrita, foi editada a Lei Complementar nº 64/90, que prevê, além de outros, o seguinte caso de inelegibilidade:

 

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

(…)

e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena; (grifou-se).

 

Como se observa, esse dispositivo legal exige o trânsito em julgado da sentença criminal condenatória como requisito para caracterização de inelegibilidade. Somado à garantia constitucional fundamental que consiste na “presunção da não culpabilidade” (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” – Art. 5º, inciso LVII), tornou-se o forte obstáculo à tentativa de interpretação judicial que autorizasse a Justiça Eleitoral a negar o registro de candidatos a cargos eletivos que tenham vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, ainda que não haja decisão judicial condenatória definitiva.

 

A maioria que prevaleceu por duas vezes no TSE e por uma vez no STF, embora reconhecesse como bem intencionada a tese jurídica minoritária, enxergava no preceito legal acima citado (alínea “e” do inciso I do Art. 1° da Lei Complementar n° 64/90), exigente do trânsito em julgado da condenação, obstáculo jurídico intransponível às boas intenções de depuração do sistema democrático-representativo brasileiro.

 

Pois bem, a cidadania reagiu e, capitaneada por entidades representativas da sociedade civil (Ordem dos Advogados do Brasil, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e com apoio de entidades associativas de magistrados e membros do Ministério Público, valeu-se do permissivo constitucional (Art. 1°, parágrafo único, Art. 14, inciso III e Art. 61, § 2°) e apresentou projeto de lei de iniciativa popular à Câmara dos Deputados, com o objetivo de modificar a Lei Complementar n° 64/90 e suprimir o obstáculo para a negativa de registro de candidaturas de pessoas com “ficha-suja”[3], mesmo que a decisão condenatória não tenha ainda transitado em julgado.

 

Esse projeto de lei de iniciativa popular se juntou a outros que já tramitavam no Congresso Nacional e foi consolidado junto a outras propostas de alteração da lei das inelegibilidades, resultando no projeto de lei complementar n° 58/2010, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aprovado, na semana passada, pelo Senado Federal, com alterações redacionais (que geraram controvérsias que examinaremos ao longo dessa série de artigos sobre esse tema), sendo remetido ao Presidente da República, que possui o prazo de 15 (quinze) dias para sancioná-lo ou vetá-lo.

 

A redação final aprovada pelo Senado Federal introduz inúmeras mudanças na Lei Complementar n° 64/90 (Lei das Inelegibilidades), mas a principal delas, naquilo que mais diretamente está relacionada ao tema deste artigo, é a mudança da redação da alínea “e” do inciso I do Art. 1° da Lei Complementar n° 64/90, que passa a ser a seguinte:

 

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

(…)

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;

3. contra o meio ambiente e a saúde pública;

4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;

5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;

6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;

7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;

8. de redução à condição análoga à de escravo;

9. contra a vida e a dignidade sexual; e

10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;

f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;

 

 

Observe-se: se sancionada, a lei passará a contemplar a hipótese de inelegibilidade não apenas no caso do trânsito em julgado da sentença condenatória, mas também no caso de decisão condenatória que ao menos tenha sido proferida por órgão judicial colegiado, no caso dos diversos crimes especificados.

 

Se sancionada pelo Presidente da República, essa novidade legislativa: a) poderá se aplicar àqueles que já tenham sofrido tais condenações ou somente àqueles que venham a sofrê-las após a sua entrada em vigor? b) poderá se aplicar às eleições de outubro de 2010 ou somente para as futuras eleições?

 

Essas reflexões serão efetuadas nas próximas semanas.



[2]  A decisão foi apertada: tanto em 2006 quanto em 2008, três dos sete Ministros do TSE sufragaram a tese da possibilidade da negativa do registro da candidatura independentemente do trânsito em julgado da condenação (em 2006, os Ministros Carlos Ayres Britto, Cesar Asfor Rocha e José Delgado, e em 2088 os Ministro Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Felix Fischer ficaram vencidos nesse entendimento).

 

[3] Particularmente não gosto dessa expressão, mas é a que passou a ser utilizada pelos meios de comunicação e melhor compreendida pela sociedade.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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