“Ite, Missa est”.

“Ite, Missa est”.

 

Introibo ad altare Dei.

– Ad Deum qui lætificat juventutem meam.

Era assim que começava a Missa, no meu tempo de criança, no assim chamado “Rito Tridentino”, o Sacerdote de costas para os fiéis, acolitado por dois ou mais coroinhas; um mais graduado conduzindo o Missal de um lado para outro, do esquerdo destinado à Epístola, ao direito para o Evangelho, um aprendiz, carregando o turíbulo, outro trazendo o incenso na naveta, outro ainda no comando das sinetas, sem falar dos cálices e das galhetas, garrafinhas trazendo água, e o vinho não consagrado.

Nesse contexto em que tudo era sagrado, eu só observava, sem ousar ser coroinha.

Minha inquietação nunca o permitiria, afinal animava-me uma certa rebeldia, nem tanto, nem quanto, que me escolta, ainda.

Eu sempre preferia acompanhar tudo, prestando atenção, para guardar ainda nas minhas lembranças.

A Missa era celebrada em Latim. Soava bem nos meus ouvidos.

Dizia-se então: dialogada; porque o Sacerdote pronunciava a reza no altar e a comunidade, em coro, respondia, nos moldes da prece acima, que no meu entendimento, traduzia por versão:

– “Subirei ao altar de Deus

– “Do Deus que alegra a minha juventude”.

Aprendi a dialogar com a Missa em Latim no Educandário Brasília, das Professoras Alaíde Oliveira e Helena Barreto, isso num tempo em que o menino decora fácil e aprende para o resto da vida.

Se eu deixei o Brasília em 1958, devo acrescentar que houve uma grande euforia, isso  em 25 de janeiro de 1959, quando o Papa João XXIII, com sua “bonomia atrevida” (bonhomie madrée), segundo palavras de Patrick Buisson,  em “Le krach de la foi” (a quebra, falência, ou insolvência da fé), um dos temas estudados no seu livro “La fin d’un monde”, Edition Albert Michel ( O fim de um mundo), euforia acontecida quando o Papa, entre preces ardentes e slogans publicitários, convocara, diante do Santo Colégio de Bispos, e fora dos muros da Basílica de São Pedro, um novo Concílio, aquele que seria conhecido como o Vaticano II.

Nas minhas lembranças, poucos sabiam o que era um Concílio.

Sabia-se o que era um Conclave, uma reunião de Cardeais, para eleger um novo Papa. Sabia-se até, enquanto lição de substantivos coletivos, o que seria uma alcateia, uma choldra e até um conciliábulo, mas Concílio, o último acontecera tão distante, em 1869, o Vaticano I, do Papa Pio IX, que ninguém mais o lembrava.

E a Igreja de Pio em Pio, passara depois por Pio X, um Santo do qual tinha imagem, por Padroeiro também de Aracaju, Pio XI e Pio XII, que eu me acostumara a ver magistralmente, em fotografia, na sua Sede Gestatória, carregada pelos fiéis, contornando a Praça de São Pedro, no Vaticano.

Mas, como o que foi, não é nada, segundo o Poeta, a Igreja com o seu novo Papa, o angelical Cura e Patriarca de Veneza, João XXIII, iria se reunir para mudar, “se aggiornar”, como muitos passaram a falar, em italiano, um idioma que nos era estranho.

Digo estranho, porque os idiomas estudados no Ginásio e no Colegial eram o Latim, O Francês e o Inglês, todos maltratados pelos estudantes que neles não viam utilidade.

Em termos de pouca utilidade, se eu tivesse nascido uns três anos antes, também teria estudado Grego, mas esta língua morta, já a encontrei matada e enterrada no currículo de meu tempo, tempo também em que exalavam em derradeiros suspiros as aulas de Música, Religião, Canto Orfeônico, solfejando:  “UT queanti laxis / REsonare fibris / Míra gestorum / SOLve polluti / Sancte Iohannes, no versejar orante de Guido D’Arezzo, Organização Moral e Cívica, Desenho e até Trabalhos Manuais.

Mas, voltando aos Concílios, os que pesquisam a História da Igreja, sabem que estes encontros, nada pacíficos, sempre foram convocados para dirimir diferenças, estabelecer comandos, definir doutrinas, tudo aquilo que uma assembleia debate, tentando pacificar embates e suavizar discordâncias, em tantas divergências, trocas de falas odientas, causando guerras e massacres, condenações heréticas, expulsões execrais e excomunhões por heresia.

Com o Concílio Vaticano II, esperava-se que uma brisa profética pairasse sobre a tempestade do Espírito.

Ninguém duvidava quanto àquela providencial missão.

Havia uma expectativa tal que restou relatada até nos textos que se conservaram, afinal “As almas daqueles que estavam presentes foram logo tocadas , por uma espécie de raio de luz celeste, exibida nos rostos e olhos dos presentes, refletindo a doce emoção que sentiam”, isso segundo citação acolhida por Patrick Buisson, em seu livro acima citado.

O concílio chegava com “superexposição, superdimensionamento, superavaliação, numa audaciosa mudança, a velha instituição eclesial aceitando se descobrir, se sacrificando inclusive, e se curvando às regras emergentes da sociedade do espetáculo”, o que para uns, sobretudo os ateus, aqueles que sempre palmilharam entre os críticos da Igreja, viam como uma aceitação das suas teses.

Seria o primeiro concílio midiático, com forte participação da imprensa, a intelectualidade agnóstica torcendo vivamente para que a Igreja se fizesse menos dogmática, abandonando teses e ritos, abrindo-se à paganização do mundo, que viria com todas as liberações e libações, do corpo e da alma, do pecado e da culpa, tudo valendo e valendo tudo, porque daí surgiria uma Igreja mais sensível aos anseios do homem, e da mulher, missionados a realizar o Reino de Deus, não no Céu, por distante, utópico e até impossível, ou ilusório, sobremodo, como profliga a agnosia ateia, de céus e infernos, mas no aqui da Terra, e no agora, enquanto cenário, por presente, a exigir a fruição fraterna dos bens, que seriam comum de todos.

Desnecessário dizer que em sucessivas reformas a Igreja passou a cortejar uma teologia “preferencial” e quase exclusiva, de pobres e desvalidos, demonizando o Capital, porque “no ter e no ser”, estaria o verdadeiro, e talvez único, pecado do mundo.

Houve então uma luta entre partidários da ortodoxia, da verticalidade da cruz do Cristo, sendo substituída por uma horizontalidade da mesma cruz, segundo a qual aí estaria toda a humanidade pendurada, ela sim, a de única importância na pregação Evangélica.

Se a Fé antes salvava, e só havia salvação na Igreja, agora a Fé não salvaria tanto, ou não salvaria ninguém, ou ainda, por pior, em degradação sucessiva de esforços, porque ninguém conseguiria se salvar suficientemente com suas obras, sempre imperfeitas e insuficientes.

E nesse capitular decrescente, a Igreja resolveu se sentir culpada do que foi e do que era, pedindo perdão pelas heresias combatidas, pelas condenações em fogueiras, arrependimento que levou até mesmo a sentir-se em erro na conversão dos gentios, dos indígenas e aborígenes, conspurcando-lhes as crenças originais e primitivas.

A Igreja passou a se sentir mal nos seus ritos, nos seus gestos, nas suas edificações monumentais, porque tudo ali era denunciado como fausto, exploração, fruto do sangue e suor espoliado: tudo aquilo que mal diziam seus críticos: ópio do povo.

E o que era belo enquanto memória de um tempo perdido, mas acontecido, tudo era visto como erros em tantas luzes.

Até uma prece ditada em Latim foi rejeitada. A mesma prece agora pronunciada no idioma comum dos homens, proclamada por seus defensores, seria bem mais receptiva por aqueles homens e mulheres dos anos sessenta, que agora saberiam ser melhor escutados por Deus.

Logo chegariam também aqueles que pregando o “ecumenismo”, conseguiriam atrair os demais irmãos de Fé distinta, cristãos ou não, os Judeus vorazmente perseguidos por séculos, os Muçulmanos, combatidos em Cruzadas, promovidas em Salvação, os Budistas, Hinduístas, e tantas outras crenças, porque o homem era o mesmo, em seus sonhos, limitações e angústias.

Se tudo isso foi bom, se foi mal, ou foi apenas o resultado irreversível da evolução do humano, as Igrejas Católicas começaram a se esvaziar.

Fala-se que o número de batizados caiu, mas por que falar de Batismo, se até este restou, cada vez mais distante, em tantas ausências de prece e esquecimento de orações, em Padre Nossos e Aves Marias, em Credo em Deus Padre, Santo Anjo do Senhor e o Eu Pecador, cada vez menos repetidos?

Afora tudo isso os Pontífices se sucederam.

Do João XXIII, o idealizador de Vaticano II, veio Paulo VI, aquele que o concluiu; depois João Paulo I, muito efêmero, João Paulo II, o notável Papa polonês que desmitificou o comunismo, contemporâneo da Glasnost e Perestroica russas, da queda do Muro de Berlin, da tcheca Revolução de Veludo e a ampla democratização liberal do mundo.

Depois veio o Papa Bento XVI, destacado teólogo e filósofo, que tentou reafirmar a doutrina da Fé, sendo muito criticado porque exerceu no seu magistério suas apreensões quanto ao islamismo crescente no velho mundo.

Bento XVI, o Papa Panzer, por alemão e antinazista, ousara também liberar o Rito Tridentino da Missa, de “motu propro Summorum Pontificum”, em 2007, tentando harmonizar divergências surgidas, sobretudo na França com os seguidores do Cardeal Marcel Lefebvre, no pós-concílio.

A Missa Tridentina fora então liberada para aqueles que assim o desejassem.

Depois, por uma humildade nunca presente em todos, no humano, o Papa Bento XVI, sentindo-se fragilizado e no ocaso da vida, resolveu aposentar-se, recolher-se aos seus estudos e orações.

Substituiu-lhe um Cardeal argentino, o Jesuíta Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, muito festejado mundo afora, diferente de Joseph Ratzinger, o Papa alemão, inteligente, culto e com vasta produção intelectual e filosófica, e até por isso rejeitado, porque há quem pense que o Padre bom não é aquele que muito estuda e doutrina.

Mas, como dissertara afavelmente Morris West em seu best-seller, “A Sandália do Pescador”, a Igreja tem essas figuras notáveis; do cura paroquial ao teólogo, do exegeta ao pouco esteta, conduzindo o mundo orante, pecador e penitente.

Na minha vida e na minha Igreja frequentam Padres que me ficaram na lembrança, dos meus tios, o Padre Juca da Capela, vigário de uma longa vida, o Padre Zeca, muito querido e reverenciado até pelos filhos que deixou, coisas da fragilidade do ser, contemporâneo do Monsenhor João Batista Daltro de Carvalho, homem notável de Simão Dias e Lagarto, bisavô de minha querida Tereza Cristina, sacerdote que bem sofrera a angústia de não poder exibir o filho Pedro que legou, e a bela família que de sua sequência iniciou, os Garcia Moreno.

Padres como o Monsenhor Eraldo Barbosa que me casou com Tereza Cristina, em 3 de fevereiro no distante 1973, casamento por ele abençoado e continuado.

Padres como Monsenhor Olívio Teixeira da Catedral de minha infância, João Moreira Lima, destemido pregador anticomunista a serviço do trabalhador, os Bispos Dom Fernando Gomes, Dom Távora, Dom Luciano, inteligência viva, pregador fulgurante, polemista corajoso, homem voltado para o estudo, a criação do Ensino Superior em terras Serigys, da nossa Universidade Federal, em tempos nada fáceis, disputados por divergências pessoais, políticas e de ideias.

Padres outros de linguagem cálida, como o Monsenhor José Araújo Machado, magrinho, mirrado e franzino, Padre Pedro Oliveira, um Santo murcho também, mas agoniado, o Frei Miguel dos Capuchinhos, outro Santo Homem, e tantos outros, de quem eu falaria mais, de tantos e de muitos mais, como o Cônego Claudionor de Brito Fontes, que não me casou, mas casou alguns dos meus filhos, e sempre foi uma bênção para aqueles que o ouviam, em pregação terna, a semear um Evangelho de Paz, de Esperança e de Vida.

São Padre, são Sacerdotes que fazem a Igreja permanecer no mundo, embora existam os que neles só veem os erros, as falhas, as imperfeições, quando o Deus na cruz nos perdoa a todos, sem exceção, os mal arrependidos e os bons ladrões.

Comparando os dois Papas, e diante da renovada proibição do Rito Tridentino, o pensador Michel Onfray, contemplando na Igreja Católica e em seus ritos o pulso de nossa civilização, confessa-se desanimado com a decisão do Papa Francisco de restringir a missa em latim.

“Sou ateu – diz ele – mas a vida da Igreja Católica me interessa porque ela dá o pulso à nossa pobre civilização judaico-cristã.  Porque se Deus não é do meu mundo, meu mundo é aquele tornado possível pelo Deus dos cristãos.  Não importa o que digam aqueles que pensam que o meu país, a França, começou com a Declaração dos Direitos Humanos, isso é tão estúpido quanto acreditar que a Rússia nasceu em outubro de 1917.

E prossegue – “O Cristianismo moldou uma civilização que é minha e em quem acredito, e que posso amá-la e defendê-la sem bater meu coração, sem ter que pedir perdão por suas faltas, sem esperar uma redenção após a confissão, contrição e nem mesmo cair ajoelhado.  É uma loucura seguir aqueles que fogem do Cristianismo dizendo que isso não aconteceu”

O Papa Francisco não se compara ao Papa Bento no nível teológico, todos o sabemos.

O ateu Onfray achou tocante o Papa Francisco exibir-se em foto perante um Jesus Cristo usando um colete salva-vidas, alaranjado, dos afogados imigrantes.

Já sobre o Papa Bento XVI, foi extraordinário um ateu enaltecer o “seu discurso em Regensburg onde, em 12 de setembro de 2006, na universidade alemã onde fora professor, afirmara, enquanto Papa, que o Cristianismo e o Islã mantêm uma relação antinômica através dos textos, em particular sobre a articulação entre fé e razão, mas também sobre a questão da violência em geral, e da jihad em particular”.

“Digo pelos textos – continua Onfrey –  porque Bento XVI apresentou ali, sua exegese pessoal de um diálogo acontecido no início do século XV entre o imperador bizantino Manuel II , Paleólogo, e um erudito persa”.

Era um convite a reflexão sobre o tema, mas que foi considerado um insulto global ao Islã … E era a reafirmação da Igreja de ontem e de sempre”.

Todavia, vivemos tempos em que é preciso contornar asperezas, exibir a “fofura” de um algodão entre cristais.

E assim de recuo em recuo, a pregação é procurada, em qualquer lugar, qualquer esquina, no boteco em que é servido o melhor alcaloide e até o que alucina.

Diz ainda aquele pensador, que por sequência do Papa Bento XVI, os Seminários se encheram, e agora, com Francisco, começam a se esvaziar.

Não sei se isso é verdade, em tantas igrejas depredadas, incendiadas e vazias, sobretudo agora que estou assistindo Missa pela TV.

Em revérberos, ouço na internet que o Papa Francisco assim agiu, porque estava a crescer, embasado no rito Tridentino, uma renovada oposição ao gestado no Concílio Vaticano II.

Se é verdade não sei.

Nos corredores de claustros os rumores e os humores sempre se renovam.

Me consterna essa mudança, essa proibição renovada, esse vai e vem desnecessário, quando os dois ritos conviviam bem.

Mas, “Roma locuta, causa finita”.

– Ite, Missa est.

– Deo grátias!

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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