Para Catto, com amor!
Em 2021, eu entrevistei a cantora Filipe Catto e esse conteúdo ficou perdido até agora. Foi um papo sobre ela, sobre a música dela, sobre o poder da arte trans entre outros assuntos. No último dia 26 de setembro, a Catto completou idade nova e para celebrar lançou o novo disco, em homenagem à Gal Costa (que também completaria idade nova no dia 26 de setembro). O poder do novo trabalho, intitulado “Belezas são coisas acesas por dentro” (presente em todas as plataformas de música) fez reacender em mim a busca por nossa entrevista nunca publicada. Lembrando que esta conversa aconteceu ainda no período da pandemia, onde estávamos tentando entender o que tinha acontecido com o mundo ao nosso redor.
Jaime Neto: O seu nome tem criado uma relação com a representação LGBTQIAPN+, e com uma geração de jovens que estão procurando entender melhor seus próprios sentimentos. Quando você teve consciência de que era essa voz (ou estava se tornando essa voz)? Quando deu esse start e mudou-se a figura daquele cara comercial do início, que passava na propaganda da Globo, para esse vulcão de sentimentos e representatividade, que você é hoje?
Filipe Catto: Eu sempre estive dentro do movimento, sempre fui uma pessoa abertamente LGBTQIAPN+ e minha vivência neste lugar foi a base pra eu compor e criar meu trabalho desde adolescente. Minhas questões internas vinham sempre de encontro com esse desconforto na sociedade, na incompreensão dos afetos que restavam pra pessoas como eu. O que mudou foi o conhecimento, a troca, os tempos. O Brasil é um País lgbtfóbico, e quando comecei em 2009 era mais ainda. Não tínhamos representatividade alguma fora da caricatura e eu surgi neste contexto onde o showbizz era muito conservador e o debate sobre os direitos das minorias identitárias ainda estava longe da pauta principal da sociedade. Ali eu ainda não tinha consciência de quem eu me tornaria, não me permitia ser uma pessoa trans, era um tabu muito grande. A gente faz isso aos poucos, é um processo. Tinha 20 anos, era uma criança assustada, sozinha em São Paulo tentando me virar como dava. A carreira na música deu certo, eu tive a oportunidade nestes anos de expandir minha mente e trocar com pessoas como eu e aí a aceitação se tornou natural. Esse processo está sendo mundo fluido, eu agradeço por viver esta transformação tão maravilhosa, tão visceral através da arte. No começo da década, as únicas bixas (sic) da nova mpb era eu, o Pethit, o Leo Cavalcantti. Aí veio Johnny, As Baías, Liniker e todo esse movimento maravilhoso da cena LGBTQIAPN+ na música que é uma verdadeira revolução.
Jaime Neto: Vi uma live sua recente em que você fala que os discursos políticos precisam ser intensificados e amplificados, durante shows e manifestações artísticas. Para você, de agora em diante, arte e política vai sempre andar juntos? Não tem medo de cair na malha da militância ou ser taxada de militante e não mais artistas, como separar isso?
Filipe Catto: a arte é o progresso. A arte está sempre do lado da mudança pro bem, e isso é absolutamente político. Vivemos em um século em que o ser humano está pedindo socorro diante da exploração do trabalho, da desigualdade social, da concentração de riqueza, da intolerância de gênero. É um tempo de embate de ideias, estamos recém no começo disso. Queremos um mundo diferente, inclusivo, que respeite o ser humano e isso será o trabalho de uma vida pra cada uma de nós. Sim, meu trabalho é político porque tudo que vem de mim é. Eu sou uma pessoa trans não-binária no Brasil, não tem como eu não pensar politicamente no coletivo. Minha vida depende disso. Sou uma artivista, estarei sempre neste lugar.
Jaime Neto: Sabemos que a bandeira da luta LGBTQIAPN+ é imensa, tecida por várias dores, tragédias e alegrias. Como você seleciona o que seguir para ser essa grande referência pra tantas pessoas LGBTQIAPN+ também? O que tem formado e informado a sua cabeça nos últimos tempos?
Filipe Catto: eu não me preocupo nada com isso de ser uma representatividade. Eu estou mais cascuda, já vivi muitas coisas dentro do debate, minha carne tá ali. Tem muita gente incrível que estuda a fundo toda essa questão de forma mais acadêmica e eu estou aqui pra ouvi-las e me expandir. Quando eu falo é a partir do ponto de vista de quem está vivendo esse processo na carne, e tento contribuir com meu olhar pessoal com toda a sinceridade e abertura pra ouvir e engrandecer minha experiência no debate. Estamos em um período de mudanças. A ideia do que é gênero, sexualidade e política hoje vai se transformar radicalmente nos próximos anos. Não quero me apegar a nada pessoalmente, estou mais na onda de internalizar e descobrir qual a minha verdade dentro disso tudo, o que tá ali que é imutável, constante, que possa me dar um chão neste momento tão conturbado. Então me alimento de poesia, vejo filmes, escrevo muito. Isso me faz ter um ponto de vista mais realista sobre o que eu vivo, e assim eu posso contribuir da minha maneira, na espontaneidade. A gente luta pela liberdade das pessoas que não querem se enquadrar, que querem inventar uma nova coisa que ainda não existe e isso exige espaço pra experimentar.
Jaime Neto: você enxerga o cd CATTO como um divisor em sua carreira? Este trabalho vai definir o rumo de seu próximo trabalho? Eu vi uma divisão intensa entre o CATTO e os trabalhos passados!
Filipe Catto: eu acho que CATTO foi o primeiro disco que eu pude fazer com processo, com tempo, com uma imersão mais profunda no universo simbólico. Antes meus discos eram feitos de uma maneira mais pontual por todas as demandas dos músicos e produtores. Neste trabalho eu mergulhei fundo com o Felipe Puperi (produtor) e a gente teve uma vivência de muitos meses trabalhando no disco. Esse é um processo que eu levei pra mim em todos os outros projetos desde então. Eu gosto de trabalhar com tempo nos meus discos pessoais. É uma coisa que eu faço pro meu espírito, então não gosto de pôr prazos e metas na criação. A arte tem seu tempo, e é preciso ouvir o que cada trabalho tá querendo dizer. Os próximos discos serão sempre um mistério e uma surpresa, eles são como a vida.
Jaime Neto: A pandemia tirou de todos nós coisas boas e ruins. O que o isolamento trouxe de bom pra você? E o que você notou de não tão legal emergir em sua cabeça, e sentimentos, por conta daquela situação problemática?
Filipe Catto: foi um processo de crescimento muito grande tudo isso, muito difícil administrar toda a insegurança e o medo que vieram dessa proximidade com a morte. Eu perdi pessoas muito próximas neste período e tive toda uma jornada de luto durante a pandemia. Um luto que era pelos amigos, mas, também pela vida que a gente estava deixando pra trás. Eu acho tudo absolutamente trágico, horrendo e exatamente por isso pude reconhecer também a grandeza das atitudes de solidariedade e de respeito que apareceram. O que restou foi o empoderamento pessoal e profissional, depois de um ano e meio de restrições. Sinto que amadureci, que me tornei adulta finalmente, que sou forte pra enfrentar o mundo fazendo o que acredito e isso é muito poderoso. Eu consegui finalmente reconhecer um caminho diferente pra mim depois que aquele velho caminho desabou e renascer como uma Fênix na companhia do público, nas lives e nos projetos especiais, que trouxeram também uma linguagem que eu amo e que sempre tinha sonhado em desenvolver. Então, claro que tem muitos ganhos, a vida quer que a gente cresça e evolua. Não tem muito pra onde correr.
Jaime Neto: Qual a última coisa, pessoa, situação que fez você chorar?
Filipe Catto: eu chorei assistindo à série VENENO (exibida na HBO Max). Foi muito forte, muito emocionante. E dei uma chorada quando tomei a primeira dose da vacina. Eu dei uma endurecida na pandemia, tive de criar uma casca pra não sucumbir na maré de ódio, desinformação, mentiras e mortes neste País. Geralmente eu choro com mais facilidade, mas o Brasil me obriga a ser uma garota durona. Ainda estou no campo de batalha. Um dia quando tudo passar eu sei que vou me atirar no chão e chorar de ódio, revolta, tristeza pelo que passou, mas por enquanto preciso me manter firme e inabalável pra não dar ao inimigo o gostinho.
Jaime Neto: O que é o amor pra você? Você se sente amada hoje em dia ou tem dias que parece que ninguém te ama?
Filipe Catto: o amor pra mim é algo da natureza, de dentro de mim e de tudo que existe. É um elemento como o ar, ele faz parte de tudo. Eu não quero mais ser amada por ninguém da forma como eu precisava há alguns anos. Já caí em muita cilada por causa disso. Não quero confundir o amor com o produto amor que é vendido pela sociedade patriarcal. Isso é puro veneno. O amor que me interessa é o que vem de dentro, o amor que a gente se permite dar. O amor que a gente sente pela vida, pelo nosso corpo, pela beleza do mundo. Esse é o amor que eu posso desejar porque ele já está em mim. E assim eu posso trocar esse amor com quem está na mesma sintonia de vida que eu, que vibra nos mesmos valores que eu. Uma relação é construída de amor, de tesão e de valores compartilhados.
Jaime Neto: Como lida com as inseguranças nessa sociedade do amor fluido que permeia tudo hoje em dia? O fluido é o novo real?
Filipe Catto: eu acho que cada relação é um universo. Eu gosto de ter relações profundas e com liberdade. Preciso do meu espaço, do meu silêncio. Meu universo interior é minha maior prioridade sempre. Acho que temos de entender que somos seres humanos em processo em primeiro lugar, antes de qualquer idealização. E cada um carrega sua vida consigo, não existe como devassar essa barreira. As pessoas precisam viver o que for delas e quem sou eu pra questionar isso? Não sei se o fluido é o novo real porque existem milhares de combinações possíveis. É de pessoa pra pessoa. O que não dá mais é pra gente ignorar a realidade e sofrer por causa de ideias medievais de relação que são artificiais, criadas pelo patriarcado e pela igreja pra dominar o feminino até hoje. Se for pra sofrer, que seja por algum dilema que vá acrescentar na nossa noção de liberdade e expansão pessoal, e não pra corresponder ao ideal romântico da cultura, que é uma farsa total.
Jaime Neto: Se você tivesse a oportunidade de fazer uma ligação sem se identificar pro Bolsonaro, o que você diria a ele?
Filipe Catto: não diria nada, porque ele não merece ouvir o som da minha voz divina naquela orelha nojenta dele. Espero que pague por seus crimes contra a humanidade junto de toda burguesia nojenta deste País, que jogou a sociedade brasileira nas mãos de um assassino pra destruir o Brasil e concentrar ainda mais renda do que já concentravam. Não existe ele sozinho. É uma cadeia de horrores. Que queimem no inferno depois da morte e que sejam humilhados e punidos em vida. É isso que nazistas merecem.
Fim.