Este ano não teve “Feliz Dia dos Pais”

A relação entre pai e filho, como qualquer outra, tem dias bons e ruins. Em um dia, você acorda agitado, após uma noite mal dormida, mas, ainda assim desce as escadas do seu apartamento – um conjugado no fundo da casa dos seus pais – e, passando por cima de seus próprios problemas, ressacas e dores emocionais, se encontra ali, preparando o café da manhã para o seu pai. Você faz os ovos mexidos que ele gosta, o cuscuz do qual ele diz não poder viver sem e prepara o café na medida certa, que satisfaz o desejo dele. Tudo continua como sempre foi desde o dia em que sua mãe, que estava acamada, faleceu. Isto fez com que você assumisse a responsabilidade pela casa, um papel inerente ao de filho mais novo e gay.

Num outro dia, você acorda relativamente bem, no horário certo para enfrentar tudo de novo e sair para o trabalho, acreditando que a vida lhe trará momentos felizes. Novamente, você prepara o café da manhã para o seu pai: os ovos mexidos que ele gosta, o cuscuz que ele diz não poder viver sem… só que desta vez você come rapidamente, em pé, ao lado da pia, trocando algumas trivialidades com o seu pai, como acontece às vezes, num dia também comum. E aí você sai correndo para o trabalho.

Naquele dia, por volta das 10h45, o celular dele tocou e uma voz desconhecida perguntou:

– Este é o número do senhor Júlio?

Ele, sem se preocupar muito com a ligação, em meio às tarefas administrativas do trabalho, respondeu apressadamente que “sim”.

– Com quem estou falando? – perguntou Júlio.

– Aqui é da Defensoria Pública do Estado de Sergipe. Temos aqui uma queixa do seu pai contra você, e estamos ligando para tentar uma conciliação entre o senhor e ele – disse a moça de forma seca.

– Queixa? Conciliação? Meu pai? Sobre o quê mesmo? – questionou Júlio, deixando de lado as pastas de contas, que estavam sendo organizadas (“para o inferno com aquela papelada”).

– Senhor Júlio, o seu pai nos procurou exigindo que você saia da casa dele. Como até agora você não o fez, a Defensoria vai marcar uma data para que o senhor e o seu pai se encontrem aqui e, juntos, cheguem a um acordo.

– Oxe, como assim um acordo?

– Seria melhor passar aqui para saber os detalhes do caso, antes que isto se torne um processo contra o senhor.

– Processo? – neste momento, Júlio estava quase sem lembrar o próprio nome, de tão nervoso.

Sentiu-se tonto, mesmo estando sentado em sua cadeira, e atordoado, ainda que depois de ter bebido duas xícaras de café, de 200 ml cada, no trabalho.

Como a Defensoria só fechava por volta das 13h, ele teve tempo de sair diretamente para lá, para tentar descobrir do que se tratava.

E assim ele fez…

Vestindo-se bem, como sempre, ele não teve problemas em se apresentar à Justiça: cabelo bem arrumado, sapatos amarrados e calça clara, bem o padrão Júlio de ser. A camiseta clara e simples dava a impressão de ser minimalista e descontraído, mas, o brilho do sol no bronze do rosto deu lugar a uma palidez que refletia o impacto da notícia (algo compreensível para alguém que acabou de descobrir que seu pai está entrando com um processo…).

Na Defensoria: a porta automática do prédio se abriu, Júlio andou um pouco apressado em direção ao elevador e pressionou o botão do quinto andar. Subiu. Chegando lá procurou imediatamente pela moça que havia lhe ligado. A tensão era evidente nele: pele do rosto amarelada, a boca seca e um ar de desespero. No entanto, ele tentou aparentar normalidade, demonstrando uma calma forçada, típica de alguém que teme sair dali já algemado, embora ele nem soubesse ao certo a razão.

– Como é isso? Meu pai procurou vocês alegando que eu preciso sair de casa, para que ele possa morar com a mulher com quem ele está tendo um caso? Que absurdo é esse? Que mulher é essa? E desde quando eu o atrapalho em alguma coisa? Meu pai já teve relações com todas as empregadas que tivemos, ele nunca ficou muito em casa, e quanto ao respeito pela minha mãe, ele nem sabe o que é isso. Agora, ele vem pedir ajuda aqui para que eu saia e ele possa viver seu “felizes para sempre”. Minha senhora, eu não sei nem o que dizer. Hoje de manhã mesmo, eu estava preparando o café da manhã dele – disse Júlio, com a firmeza de alguém que tinha sido humilhado pelo próprio pai diante de estranhos.

Júlio estava azedo!

A funcionária da Defensoria olhou atentamente para Júlio. Observou seu cabelo penteado e com gel, sua camisa polo básica, sua calça bem passada (de algodão bom), sua pulseira de couro e seu tênis moderno. Ela repetiu o processo, olhando para cada detalhe outra vez, como se estivesse escaneando Júlio. Enquanto ela o examinava, ele começou a encolher na cadeira, sentindo-se envergonhado. Júlio pensou em voltar para a sua antiga casa e reunir seus irmãos para confrontar o pai sobre ingratidão e maldade. Enquanto a mulher da Defensoria explicava os detalhes da confusão, ele olhava-a convencido de que ela seria testemunha dessa possível futura tragédia familiar.

Ao sair da sala, Júlio ouviu a mulher da Defensoria comentar com uma amiga: “Um a menos, que venha o próximo caso”.

Já fora do prédio da Defensoria, Júlio ligou imediatamente para o irmão mais velho, contando o que estava acontecendo. O irmão não apenas riu, mas gargalhou, mas, no entanto, ao perceber a angústia do irmão mais novo, que na verdade não era tão novo assim, ele prometeu reunir a família para conversar com o pai ainda naquela noite.

– Que escândalo familiar desnecessário. E tudo isto por causa de uma mulher desconhecida para a família! – pensou Júlio.

De volta ao trabalho, Júlio sentou-se em frente ao computador e começou a procurar apartamentos nos classificados. Entre um pensamento e outro, de desespero, decidiu que não participaria da reunião, não tinha coragem de encarar os outros quatro irmãos.

(A reunião aconteceu. E o pai, depois de ouvir todos os xingamentos e acusações dos filhos, anunciou que retiraria a possível queixa contra Júlio, no dia seguinte).

Júlio chegou bem tarde da noite, evitando cruzar com o pai. Não queria brigar, nem nada do tipo. Como seu celular estava descarregado, ele não viu as mensagens dos irmãos avisando que o pai havia desistido de processá-lo. Adormeceu sem saber de nada. No dia seguinte, acordou atrasado e nem viu as mensagens. Desceu as escadas e começou a preparar o café da manhã do pai.

O cardápio era o de sempre: ovos mexidos do jeito que o pai gostava, cuscuz, café na medida certa para o pai. Ainda indignado com o que tinha acontecido no dia anterior, Júlio decidiu que sairia da casa do pai deixando antes uma lembrança: uma mistura de raiva, humilhação e falta de gratidão. Assim, cuspiu nos ovos mexidos, cuspiu na massa do cuscuz e escarrou no café do pai. Pegou o celular (que já estava carregando) e saiu para o trabalho.

O pai levantou e não viu o filho lá, mas agradeceu, silenciosamente, por ele ter deixado o café da manhã pronto, como fazia todos os dias.

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O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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