E se ela o guardou na geladeira por amor?
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Em Psicose, Norman Bates guardava a mãe, morta, dentro de casa. Para suprir a falta dela, ele assumia a identidade daquela mulher amada, que agora era apenas um corpo dissecado, há muito sem vida, mas, ainda assim um corpo cheio de significados para aquele filho. Se tirarmos a coisa horrenda em si, o que notamos em Norman é simplesmente o sentimento do abandono, que de tal grandiosidade e dor o fez guardar a mãe para si, como uma maneira de guardar o amor também.
Da porta para dentro, de nossas casas, só quem sabe o que se passa somos nós ou quem convive com a gente ainda que morto e guardado dentro de uma geladeira, por anos e anos. Não é surpresa que um assassino, quando mata alguém, o primeiro impulso seja o de se livrar do corpo. Temos livros, matérias jornalísticas, filmes mostrando isso, pois ainda que a pessoa seja uma psicopata, normalmente, o troféu que se guarda é uma orelha, um olho, uma foto… mas um corpo inteiro, conservado, talvez nos diga mais do que um simples ato de assassinato aparente, mesmo que nenhum crime seja em si algo simples.
E se ela o guardou na geladeira por amor? (volto a te perguntar).
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Pelo menos uma vez por mês, ela esperava a criança sofrida dormir e os vizinhos silenciarem seus cotidianos de necessidades triviais para ali, sozinha, em meio à bagunça acumulada, quieta, tirar as mordaças da geladeira, encontrando com ele. Frio, como sempre, imóvel e sem demonstrar nenhum sentimento assim era ele. E isto não tinha a menor importância para ela, que o abraçava, no centro da sala imunda. A cena, vista de cima, chamava a atenção pela beleza do caos da morte que ali estava instalado há quase uma década.
Sem precisar explicar o sumiço dele aos vizinhos ou ainda receber visitas em sua casa, para justificar um ambiente limpo a alguém, naquele templo, quem controlava o tempo exercido sobre ele era ela. Talvez demonstrar o poder sobre alguém, ainda que já morto, seja também uma das nuances de um amor inexplicável.
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Será que existe amor em um corpo mumificado? Não? E se o calor do amor dela suprisse a frieza do tempo dele na geladeira? Quando a porta de casa se fecha, e dentro estamos nós mesmos, nada mais importa porque nenhuma tragédia teria impacto maior que a solidão de quem se está vivo. Ainda que o crime dela fosse descoberto, todo o amor que o manteve endurecido semi-congelado era o suficiente para justificar tudo isso. Não existiria poder de polícia, língua afiada de vizinho ou julgamentos alheios que diminuísse o impacto do corpo dele sobre o corpo dela, porque o amor de quem se está vivendo, mesmo que só, deve ser capaz de preencher o vazio de quem já se foi.
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No abraço sem vida dele, ela se lembrava dos dias não tão felizes que eles tiveram juntos, lembrava-se do tom da voz de pigarro dele e do cheiro de cigarro impregnado em todos os poros do velho. Ela o abraçava morto, fungando desespero, buscando reviver outras vezes o odor de fumaça que ele expelia quando vivo. Agora, não se podia demorar muito abraçada ao corpo. Não existe morte cheirosa. Ainda que se borrifasse essências e perfumes, o corpo vazio de alma demonstra o seu processo natural de putrefação. Em outras palavras: a relação de abraço e amor ali tinha que durar pouco tempo, pois só guardado dentro da geladeira é que ele poderia dar aquele tipo de amor que ela precisava.
Todo cadáver fica duro, após um tempo de morte, e a posição em que ela o tinha embalado possibilitava com que ela se encaixasse nele sempre que eles se encontravam. Quando ela o manipulou para caber na mala, já sem vida, o montou numa posição fetal e sem saber, fez da mala um útero para protegê-lo. Toda vez que ela retirava a mala da geladeira, e retirava o cadáver da mala, acabava parindo ele e parindo dele ao mesmo tempo. Era o parto de um feto idoso vermelho-mumificado. Não se tinha sangue ali. Tinha dor e medo e afeto, pois o amor dela era assim. E que mais ninguém queira entender.
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Fim.
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