Je ne suis pas Charlie, je suis encore moi-même.

A frase do momento é “Je suis Charlie”, eu sou Charlie, uma citação que não me empolga, preferindo repetir Ortega e Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

Estou eu indiferente à circunstância do noticiário presente, quando toda imprensa só fala no bárbaro acontecimento que vitimou alguns cartunistas franceses e que está a suscitar um repúdio tão unânime quanto universal? Não!

Todavia, há uma repulsa tão intensa que me surpreende.

Por que de repente, o mundo tão insensível com a dor sempre presente nos feitos diários, passou a empunhar o lápis como símbolo maior de resistência a um tipo de violência específica; a liberdade de imprensa?

Seria um apoio à liberdade de imprensa, ou o direito de poder escarrar em tudo aquilo que não nos é espelho?

E neste exaspero de fim de história, a passeata parece me dizer que há níveis gradativos de maldade; algumas consentidas, outras bem aceitas ou mal suportadas, por longa necessidade de reeducação da humanidade, e esta explicitada agora como verdadeiramente insuportável.

Infelizmente para muitos, e diferente para mim que as acho igualmente insuportáveis, ouso pensar divergente; eu não sou Charlie, eu continuo a ser eu mesmo, pranteando a tudo igualmente. E se não compreendendo tudo, aceito-os por inevitáveis.

Pensar diferente, seria aceitar que, por extensão absurda, fosse lícito e louvável conferir o poder a alguém para machucar impunemente outrem, em nome da livre jocosidade cartunista, sem peias ou penas. E um estado de direito que assim procedesse estaria ilegitimamente estimulando a reparação das ofensas com a inserção barbárie do uso da força e da violência.

Vejo o atentado à revista satírica Charlie Hebdo, uma mera repetição de vários outros que se pode listar ao longo da história folhetinesca, como os que culminaram nas mortes do chargista Roberto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues, morto em dezembro de 1929, abatido a tiros, a queima-roupa, cara-a-cara, pela também Jornalista Sylvia Serafim Thibau, a morte do Governador João Pessoa da Paraíba, idem-idem a queima-roupa e cara-a-cara, por um jornalista também, chamado João Dantas, e até o assassinato de vários radialistas como recentemente aconteceu no interior do nosso estado, vítima tão pouco carpida que o próprio nome foi tão absorvido, quão olvidado, sem passeatas de microfone.

Microfonias à parte, afirma ainda Dom Ortega que “Podemos pretender ser quanto queiramos; mas não é lícito fingir que somos o que não somos.”

A humanidade no geral, e a imprensa no particular não são poços inesgotáveis de tolerância. Assim, não há santos nessa história, e eu não posso fingir que sou Charlie.

Eu não devo ser é igual ao matador de Charlie, ou me mover com a sua intolerância.

Todavia, embora não me anime qualquer fanatismo ideológico, clubista ou religioso, por essência da pluralidade de pensamento, eu preciso respeitar as diferenças, jamais satiriza-las, como a dizer: “perco o amigo, mas não perco a piada”.

Por instinto de sobrevivência, um pouco de pusilanimidade, muito bom senso e necessária moderação, “não se deve cutucar o cão com vara curta”.

Desagradando assim a tantos Charlies, daqui e de fora, parece que estou a condenar os cartunistas e absolver seus matadores.

Não é isso! É apenas a constatação de um fato; se não há justificativa para qualquer crime, ou deste crime específico, eis um bom debate para os advogados.

E mais; não há criminosos indefensáveis. O Estado de Direito exige o seu julgamento, sendo assegurada a ampla defesa.

Um preceito terrível, nesses casos! Sem falar que é sempre possível nos nossos pagos, em hipótese nunca absurda, que sob enleios e floreios, aos desasseios e parcos freios de bons advogados, possa-se pleitear e conseguir que o seu cliente responda o infame processo em liberdade, num sursis tão dilatado quanto melhor procrastinado.

Infâmias e delongas apartadas, em feito malquisto numa democracia, mas que foi notável em rapidez e eficiência, foi a pronta resposta da gendarmaria francesa; passou a bala nas feras: sem piedade!

Mas, repete Dom Ortega, que se estivesse vivo talvez estivesse também exibindo o lápis de Charlie na grande passeata parisiense: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

Como eu devo salvar a minha circunstância? Só há salvação entrando desmioladamente na passeata? Me coloque fora dessa! O mundo não restará melhor após a passeata.

Espera-se um recrudescimento de intolerância.

Leio no Le Monde entre muitas manchetes coisas do tipo: “Ontem a França retomou a Bastilha”, “Um maio de 1968 da sensibilidade”, “Medo e tentação de fuga da comunidade judaica”, a evidenciar uma recrudescência da intolerância étnica e religiosa, afinal logo após à queda da Bastilha erigiu-se o Terror, e as passeatas de maio de 1968, aqui e além, só fizeram restaurar as forças da ordem e seus excesso.

Aforismos necessários, convém repetir Gasset, um democrata, mas também um homem norteado na moderação: “O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, a larga experiência vital decantada por milênios, gota a gota”.

Se não acreditamos em nada que nos leve a matar e a morrer, não pensemos que não exista alguém que assim o queira fazer no anonimato, ou explicitamente, cara-a-cara e a queima-roupa como João Dantas e Sylvia Serafim Thibau mataram João Pessoa, fazendo-o estopim revolucionário e santo de passeata, e Roberto Rodrigues, o irmão “bonito” de Nelson Rodrigues, tornado mártir do chargismo brasileiro, tão esquecido, quão pouco reverenciado.

Por absurdo de crua verdade, João Dantas estava apenas lavando com sangue a honra de sua amada, a bela professora Anayde Beiriz, enquanto Sylvia Serafim Thibau, enxaguava o seu próprio honor e de seu amado, o médico e cientista Manoel Dias de Abreu, inteligente criador da “Abreugrafia”.

Por capricho de fanatismo das massas em passeatas, João Dantas e Anayde Beiriz não foram processados nem julgados. A ira popular exigira e o Estado da Paraíba os executou a cortes de navalha. Era preciso criar um mito, um símbolo revolucionário.

Quanto a Sylvia Thibau, ela teve melhor sorte: foi processada, julgada e absolvida pelo tribunal do júri, embora seus acusadores a chamassem a “literata do mangue”, que não era, e a nada lisonjeira “cadela das pernas felpudas”.

Finalizando vale realçar uma frase que suscitará uma resposta política. É um grito dado por Jean Marie Le Pen,  o presidente de honra da Frente Nacional, o partido da crescente direita francesa: “Je ne suis pas Charlie, je suis Charlie Martel”.

Le Pen é um crítico da islamização francesa e Charles Martel  foi o bastião heroico que impediu em Poitieurs a islamização da França. Isso nos idos de 732, ação que salvou a Europa do expansionismo muçulmano que já havia conquistado a peninsula ibérica.

Quanto a mim, eu não sou Charlie, eu continuo a querer ser eu mesmo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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