JOGA PEDRA NA GENI
Chico Buarque cantava que a “geni foi feita pra apanhar, que ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um. Maldita Geni.” A soleira da porta de Madonna que vem ao Brasil este ano, não terá a nossa, a madonna esquizofrênica das ruas, a que dava carreira, a que pedia quase assaltando a bolsa das madames na Catedral e na Nossa Senhora Menina.
Eu já apanhei de Madonna, e quando a via fechava nervoso o vidro do carro, porque ele corria atrás de mim, gritando “bicha gorda, passe o aqué”.(aqué é dinheiro na linguagem de santo). A cidade amanheceu mais triste sem Madonna. A Madonna das ruas de Aracaju, quase uma piriguete, com cara de homem pintado de batom. Ela “ foi feita pra apanhar, ela dava pra qualquer um?”
Mortificada em sua própria quintessência, ela foi e será sempre o retrato do Brasil. Levada pelas carreiras dos moleques que a perseguiam para roubá-la, a Madonna dos pés descalços, da boca suja, do susto e do medo, era também um pouco de todos nós.
Transeunte da própria ausência do poder público, ela nos fez chorar com cada paralelepípedo levado na cabeça, estrangulado no próprio vômito, com um traumatismo craniano, que era, na verdade, a homofobia explícita de um fien de siècle, onde o diferente traumatiza e estigmatiza o outro, vítima de si mesmo, seja ele Madonna ou um promotor, um pai de família ou um intelectual – todos sufragamos nas pedras lançadas sobre a cabeça da bailarina Madonna, do moleque Madonna, do marginal Madonna, qual um Pixote levado a nocaute, quando todas as Leis sangram a favor do mais forte, esvaindo em lágrimas os desavisados de que o mundo é cruel e no dizer de Victor Hugo “os homens é que são os miseráveis”,
Em profundo silêncio, já que o tempo é de solidão e homens ocos no dizer de Elliot,, passo pelo hidroviário abandonado onde vi uma vez Madonna fumando crack, – lá estava a porta aberta dando para o rio Sergipe sem a figura magra, esguia, quase um cisne, da preta Madonna-Geni, agora camuflada no IML, sem documentos, sem identificação, sem vida. Não mais corre atrás de ninguém, não mais grita, não mais rouba, nem se arruma de salto alto, nem pede roupa velha aos travestis, nem mais dorme sobre o colchão de pregos, nem mais ilumina o bairro Industrial, nem mais chora, nem mais eu, nem mais nada.
Vestida de mártir, ela se foi num prenúncio de Brasil sucata, de avenida Brasil, de Aracaju de Lisboa, Pafôncio, Gilmar Cardoso e tantas Madonas desesperadas frente ao tiro, à lágrima, a mãe que manda prender o filho, tantas Madonas sem nome, CPF, sem identificação, anônimas, na própria sorte do Brasil impune, sem nome, sem beleza.
Agora, nem São Paulo Fashion Week, nem Gaudi, nem Paulo Borges, nem Mostra Aracaju, nem Van Gogh, nem HStern, nem Escola de Samba da Mangueira, nem GLBT, nem GLS, nem in nem out, nem Jesus Luz, nem Anderson Silva. Neymar, filho de um dos deserdados da sorte, dorme sobre o Lamarão e planta versos na bolsa de plástico, onde defeca. Nada mais faz sentido.
O pôr do sol da Barra sangra ante os estilhaços de pedra, transformadas em sangue, a hora dos assassinos que falou Henry Milller está clara. Rimbaud não fez seu poema para Verlaine, nem Gucci, Prada, Armani ou Constanza Pascolato com seu rubi. Estamos perplexos: o filme poderia ser Ang Lee, de Almódovar, de Luchino Visconti em” Morte em Veneza” de Thomaz Mann. Mas o filme insiste em rodar na tela, nos mostrando o cérebro “torado” pela pedras(nas as de crack) que tumorizaram o que já era uma fistula, um rótulo de sangue – a Madonna dos páramos, agora para sempre calada.
Estamos sem a Elke Maravilha da rua da Frente, do mercado, dos pobres enfileirados, pedindo a Deus um help. A vida tem sido uma quimioterapia de fatalidades e injustiças. Sob o sol de Aracaju o sangue de Madonna nos desperta para uma verdade: onde começa a nossa Madonna?