Lamennais, um revoltado I.

Nestes tempos de indiferentismo religioso, ouso discutir a figura de Félicité-Robert de Lamennais (1782-1854), utilizando sua biografia, escrita por Aimé Richardt, e publicada em 2016 por Éditions Artège – Paris, com o título “Lamennais Le Révolté”.

Poucas pessoas tiveram uma participação destacada no cenário histórico e político presenciado por esse religioso notável, em meio ao despertar das luzes e das convulsões revolucionárias, seguidas a partir dos eventos que destronavam reis e profanavam o sacro.

Professando uma fé madura, em contracorrente ao agnosticismo racional, modismo surgido com o despertar das luzes e a violência dele sequente, Lamennais abraçava um cristianismo novo, rejeitado e repelido, e quase excomungado pela Igreja de seu tempo.

Sua fé não era uma crença nova, uma religião qualquer, ou mesmo uma nascente vertente protestante, mas uma fé cristã e madura, que seria coerente com o pensamento ideológico do tempo presente, afinal defendia a liberdade de imprensa, e as franquias necessárias ao livre pensar e discutir, temas então condenados pela Igreja Católica.

Igreja a qual amava e obedecia, por início, mas que depois o rejeitou, porque sua hierarquia não ousara condescender com o seu pensar divergente, entendido como pernicioso.

A Cúria Romana entendeu seu pensamento tão danoso, maléfico e lesivo, que até um Papa, Gregório XVI (1831-1846), dedicou-lhe uma Encíclica, a “Singulari Nos”, de 3 de dezembro de 1839, que recomendava extirpar suas ideias visando a manutenção da “saúde e incolumidade das coisas sagradas e civis, e…, para que não se torne mais pernicioso nem favoreça a furiosa mania de novidade, e, como câncer, se espalhe entre os povos” (Singulari Nos 7).

Tal reprovação, porém, aconteceu por consequência de muitas águas revoltas, golpes nem sempre leais em conversas francas e ponderações de ambas as partes, numa época de muitas turbulências pós-revolucionárias.

Félicité-Robert de Lamennais nasceu em 1782, em Saint-Malo, sete anos antes da Queda da Bastilha e bastante longe dali, na Bretanha francesa, à margem do Canal da Mancha.

Saint-Malo, que fora um abrigo de corsários no início da Idade Moderna, hoje é roteiro de visitas turísticas, afinal ali aconteceu, durante a 2a Guerra Mundial forte luta entre as forças aliadas, comandadas pelo General Patton, que a destruiu com exagerado bombardeio, vencendo o exército alemão nos entreveros da reconquista da Normandia.

Por sua localização e história, e sobretudo por este cenário de resistência guerreira, Saint-Malo, hoje reconstruída, é ponto preferido de visita turística da região.

Muitos turistas ali se hospedam para conhecer seu complexo reconstruído de muralhas medievais, o Monte Saint-Michel que lhe fica próximo, e a Usina Talassamotriz La Rance, a primeira usina mareomotriz, ou maré motriz de geração elétrica.

Donde o nome Talassamotriz, desconhecido para muitos, vem de Tálassa, a deusa do mar na mitologia Grega, filha de Éter e Hemera.

E a Usina Talassamotriz La Rance, algo novo também para nós brasileiros, é uma notável aplicação de energia renovável, utilizando as ondas do mar, na preamar e na vazante, vadeando o estuário do rio Rance, para geração de energia elétrica, em oscilação periódica a cada seis horas, cerca de 12 metros de altura entre a subida e a descida do mar.

De Saint-Malo, sabe-se também que fora base dos corsários franceses que atacavam os galeões ingleses, saindo dali o mais famoso conquistador francês, Jacques Cartier, o descobridor do Canadá.

Félicité-Robert de Lamennais (1782-1854)

Mas, a despeito de muitas outras curiosidades, interessa-me falar de um malouins (gentílico dos nascidos em Saint-Malos), destacado por suas lutas em defesa do livre professar da fé cristã, perseguido como tantos, por heresias e preconceitos, nos conflitos de fé e razão.

Hoje, num tempo profundamente descrente das coisas do Espírito, bem vale o professar de Lamennais, enquanto pregador e religioso.

Diz ele de maneira sublime e lapidar: “Longa é a tarefa da humanidade, e seu labor é rude; mas para adoçá-lo. Deus lhe deu duas companhias celestes, a fé que a sustenta e a esperança que a consola”.

Felicité-Robert de Lamennais era filho de Pierre-Louis Robert de Lamennais, um armador tornado nobre pelo Rei Luís XVI, por ocasião da convocação dos Estados Gerais, em prévias de revolução francesa.

Sua mãe, Gratienne Lorin, era filha de Pierre Lorin, Conselheiro do Rei e Senescal, oficial encarregado da aplicação da justiça e da administração provincial do reino.

Logo cedo, aos cinco anos de idade, Félicité fica órfão de mãe sendo criado por uma senhora de nome, La Villemain, que o tratava bem.

O menino era frágil, atribuía-se a um nascimento pré-maturo, e desde a infância era acometido por acessos de cólera, que terminavam com desmaios.

Era um pouco selvagem, concentrado em si mesmo. Não parecia se agradar senão no isolamento.

Obediente aos caprichos de seu humor inquieto, se recusava a qualquer restrição que lhe fizessem.

Relutante nos estudos, nada o demovia.

Um tio tentou inicia-lo no estudo de latim, obtendo pouco sucesso com o indomável sobrinho.

Como este tio tinha uma vasta biblioteca, o garoto adquiriu o hábito insaciável de leitura.

Logo se tornou um autodidata, alguém que adquiriu uma vasta e invejável cultura.

Neste tempo a tormenta revolucionária chegara a Saint-Malo (1793-1796), o terror sendo imposto por Jean-Baptiste Le Carpentier, que reinava como mestre na cidade, guilhotinando nobreza e clero, delegado executor da Convenção para extirpar as forças de reação da Vendéia.

Curiosamente, o seu pai, embora nobre, não só escapa da guilhotina como é nomeado comissário de polícia, oportunidade em que pode proteger vários padres não juramentados, que eram perseguidos e cassados pelos revolucionários.

Neste tempo os padres, caídos em desgraça, eram obrigados a renunciar sua fidelidade a Roma.

A Convenção Revolucionária tinha aprovado a Constituição Civil do Clero, os padres eram estimulados a se casarem, e obrigados a jurar a Constituição da República.

Nesse tempo, procissões eram realizadas em que levas enormes de sacerdotes despiam seus paramentos em praça pública sob aplauso da massa revolucionária, caso de Jean-Baptiste Joseph Gobel (1727-1794), que não só renunciou o solidéu e o anel para usar o barrete frígio, tornando-se Arcebispo Constitucional de Paris, e como tal acolitou a Maximilien de Roberspierre no “Culto ao Ser Supremo”, oficiado na Igreja Notre-Dame de Paris, quando foi entronizada uma cantora de ópera, uma prostituta para alguns, encarnando como nova Maria, e figura ideal da República.

Neste cenário de excedente vandalismo e fustigado pela sede raivosa da Convenção, o populacho perseguia e forçava o clero a se dividir. 

A despeito, todavia, da grande maioria de sacerdotes juramentados, surgiu um diminuto número de padres resistentes que por não jurarem à Constituição Civil do Clero, passaram a ser conhecidos como “Refratários”.

Se houve a apropriação dos bens do clero pelo novo regime, ao clero juramentado sobrou por princípio uma situação por início cômoda, afinal os padres se tornaram funcionários remunerados pela República.

Entretanto, por orientação agnóstica da Revolução, e por contenção do erário começa a falência da Igreja Constitucional, em corte de despesas, incidindo nas remunerações dos padres juramentados.

Por sucessivas marés barbáreis, o Estado passou a reduzir-lhes a receita, afinal a República preferia não professar religião alguma, pregando a indiferença por qualquer culto.

O Clero francês se cindiu entre padres juramentados, aqueles que bem ou mal sobreviviam às custas do Estado, e aqueles, ditos “Refratários”, perseguidos, emigrados e dizimados pela intolerância que os via como traidores da República, então ameaçada por inimigos externos, e por internos da “Reação Revolucionária”, em particular da Vendéia.

Logo, porém, os Padres Juramentados perdem o reconhecimento e o respeito dos fiéis.

É quando ressurge com destaque os “Padres Refratários”, aqueles que em coragem e sacrifícios inauditos mantiveram sua fé na verdadeira religião; aquela liderada por Pedro, em Roma, que apascentava com extrema dificuldade sua grei.

Nesse tempo, Felicité Lamennais é um adolescente, e tem o abade Jean-Marie, seu irmão, como seu melhor amigo e confidente, que o convence a receber a Primeira Comunhão.

O Abade Jean-Marie de Lamennais seria responsável também pela conversão do irmão Félicité-Robert levando-o a receber a tonsura e as ordens menores (1809) e posteriormente as vestes sacerdotais (1816).

Antes, porém que isso acontecesse, a França vivia os conflitos inerentes à Reação Termidoriana, o período do Diretório, do Consulado, o Golpe de Dezoito Brumário, Napoleão Bonaparte Imperador, sua derrubada após a derrota em Waterloo, com a volta provisória de Luís XVIII, os “Cem Dias de Bonaparte”, e finalmente sua queda definitiva com a Monarquia sendo constituída com Luís XVIII, amparado pela “Santa Aliança”, o conjunto das nações reacionárias, cuja missão era extirpar o fervor revolucionário em expansão incontrolável.

No plano interno, e em particular no contexto da religião católica, a presença afirmativa de Napoleão promoveu uma concordata com o Papa Pio VII, em que foram dirimidas divergências ensejadas a partir da Constituição do Clero Revolucionário e à Santa Sé.

Não interessava a Napoleão tal conflito entre Igreja e Estado. O império queria o apoio da Religião.

Napoleão não professava um Estado Laico, como o fizera os radicais republicanos. Queria o apoio da Religião para manutenção da ordem.

Nesse particular ousou sustentar o Papa Pio VII, tutelá-lo, e até prendê-lo para conseguir a assinatura de uma “Concordata” (1801), visando o bom convívio entre a Igreja Católica e o seu Império.

À parte esses fatos, em 1809, Lamennais era um jovem professor de matemática em Saint-Malo, quando resolve, a conselho de seu irmão Jean-Marie, receber a tonsura e as ordens menores

Falando agora um pouco de mim, direi que entrei em contato com a figura de Lamennais, nos idos de 1990, quando adquiri o livro “O Fenômeno Totalitário”, de Roque Spencer Maciel de Barros, publicado pela Edusp Itatiaia, 1990, sob auspícios da Universidade de São Paulo, no Reitorado do Professor José Goldemberg.

A compra desse livro, como tantas, aconteceu numa saída rotineira com meu pai, caminhando pelo Calçadão da Rua João Pessoa, após a reunião-almoço do Rotary Club Aracaju, às quartas-feiras, quando visitávamos as livrarias, em particular a Livraria Didática, de saudosa lembrança, atendida pelos vendedores Maciel e Marivaldo.

Nos “Estudos Complementares” deste livro de Spencer de Barros consta o Ensaio “Lamennais e a Igreja do Povo’”, acrescido com um “Apêndice sobre a Teologia da Libertação”.

Nesse tempo, a “Teologia da libertação” era tema de muita discussão com escritos do peruano Gustavo Gutiérrez, do brasileiro Leonardo Boffe e tantos outros, que não agradaram de todo a Karol Vojtila, o Papa João Paulo II, e a Joseph Razinger, então Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, o Santo Ofício, e hoje Papa Emérito Bento XVI.

Segundo Spencer Maciel de Barros, há três Lamennais.

O primeiro, de pensar Ultramontano, seguidor fiel de Roma, inimigo do livre exame, do protestantismo, da filosofia. Nesse primeiro momento sua defesa do Ultramontanismo consistente ao absolutismo Papal, tanto espiritual como temporal, o faz detentor das simpatias da Igreja, tendo o Papa Leão XII pensado em elevá-lo ao cardinalato.

O segundo Lamennais, de pensamento liberal, é o fundador do jornal “L’Avenir”, defensor de um catolicismo novo, defendendo a liberdade de consciência, até então execrada.

Em “L’Avenir”, o jovem padre explicitava que havia dois tipos de liberalismo na França.

Um, o liberalismo antigo, inspirado na filosofia do século XVIII, inimigo da religião, em particular contra o cristianismo, que por livre pensar, levara intolerância e opressão.

Este liberalismo tido como antigo, seria substituído por um novo, pregado pelo jornal, que conciliava as luzes modernas com a religião, na certeza que daí viria a unidade da fé perante um único pastor. Tema consistente ao título do Jornal: “L’Avenir”- O Futuro.

Já o terceiro Lamennais, alguns o veem como “Socialista”.

Neste contexto o próprio Aimé Richardt, em “Lamennais Le Revolté”, o vê na vertente dos antigos socialistas utópicos; Thomas Morus (1478-1535), e sua “Utopia”, Tommaso de Campanella (1568-1639) e sua “Cidade do Sol”.

Outros o creem como um percussor de Karl Marx (1818-1883), afinal a “Liga dos comunistas” sucedera a “Liga dos justos”, inspirada em  Wilhem Weitling (1808-1871), e sua obra “A Humanidade tal como ela é e tal como ela deveria ser”, de 1838.

Entendem-no como “Socialista”, arrimados na “Liga dos Justos”, cujo lema afirmava “serem todos homens irmãos”, tendo como objetivo “o estabelecimento do Reino de Deus na Terra, com base nos ideais de amor ao próximo, igualdade e justiça”, um ponto essencial das ideias de Lamennais.

Todavia, esta visão de um Lamennais “Socialista”, um percussor de Marx, não era aceita no Ensaio de Spencer de Barros, a menos que este seja imaginado como um socialista conciliador com a propriedade privada, como bem a definira, com simplicidade, em suas “Palavras de um Crente”: “Cada um tem o direito de conservar o que tem, sem o que ninguém possuiria nada” e que “cada um tem o direito de adquirir por seu trabalho o que não tem, sem o que a pobreza seria eterna”. (Paroles d’un croyant, 1834, IX)

Se há, todavia, três Lamennais, um Ultramontano, um Liberal e um terceiro “Socialista”, melhor dir-lhe-ia um pensar “humanitarista ou populista”.

Entretanto, antes que se pense numa inconstância e rebeldia em cenário de calmaria, lembremos que o padre bretão viveu tempos revoltosos, em marés bravias e prejulgados terríveis.

E este mundo revolto se não estava mais no período de matanças indiscriminadas, por absoluta divergência do pensamento político-ideológico, caso do Terror, as derrubadas de governos sucessivas; Império de Napoleão Bonaparte, Restauração Monárquica dos Burbons com Luís XVIII e Carlos X, Monarquia Burguesa de Luís Filipe, II República, com Brissot, Cavaignac e Lamartine, e o Dezoito Brumário de Luís Napoleão, não ensejava sossego.

Tempo que permitiu, inclusive, o fuzilamento da população amotinada em barricadas, cenário em que Gavroche, o menino zombeteiro, inteligente e corajoso é fuzilado como símbolo de destemor e idealismo, tomado por Victor Hugo, na sua obra magistral “Les Miserables”.

Ou seja: há uma razão para a inconstância de Lamennais. Ele nunca seria “um morno”, alguém que é vomitado por Deus, conforme Apocalipse 3;16.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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