Tornou-se comum entre jornalistas e escritores a reprodução de parte de um discurso desfavorável sobre Virgulino Ferreira da Silva, pernambucano nordestinado no cangaço, que morreu há 68 anos, em Sergipe (gruta de Angicos, município de Poço Redondo, 28 de julho). Atribui-se, generalizadamente, a ele a “perversidade” de marcar com ferro quente o rosto dos desafetos, quando os episódios documentados dão autoria a Zé Baiano, como registram Ranulfo Prata na primeira edição de Lampião (Rio de Janeiro: Ariel, 1934) e Frederico Pernambucano de Mello em Guerreiros do Sol (São Paulo: A Girafa Editora, 2004). Desde o escritor sergipano, que corre mundo uma foto de uma mulher, negra, marcada no lado esquerdo do rosto, com as iniciais JB, reproduzida por Frederico Pernambuco de Mello. “ Mandamos que nenhum cristão, que fosse convertido da Lei dos Mouros à nossa, sendo forro, nem Mouro forro, de quaisquer partes que sejam, venha, nem entre nestes Reinos e Senhorios, posto que diga, que vem com intenção de negociar, sob pena de, sendo eles achado das arraias (limites) para dentro, ser cativo de quem o acusar, publicamente açoitado, e ferrado no rosto, para se saber como é cativo, e perderá sua fazenda (bens).” As motivações portuguesas para a pena de ferrar o rosto com ferro em brasa são religiosas, políticas e jurídicas, ainda que no sertão nordestino do Brasil o fundo moral prevaleça, justificando o uso da pena por integrantes do ciclo do cangaço. Para as populações assustadas que viveram os anos turbulentos do cangaceirismo, a pena parecia remédio para certos pecados cometidos pelas mulheres, como cabelo curto, saia ou vestido curto, que depreciavam a imagem feminina. Outras leis e penas, transplantados para o Brasil – Ordenações Manuelinas, Filipinas, Afonsinas, Leis Extravagantes de D. Duarte – vigoraram tanto tempo que terminaram folclorizadas pelo uso social. Nas academias ainda ensinam que o costume é fonte do Direito e que em conseqüência existe um Direto Consuetudinário. O enunciado tem validade, mas é preciso observar que no Brasil as Ordenações do Reino vigoraram por tanto tempo que terminaram, em muitos aspectos, fonte do costume, como no caso do ferro no rosto, como pena. Outra pena, a de projetar vingança nos membros da família, quando o desafeto não é encontrado, freqüentou o elenco de práticas dos cangaceiros, capitaneados por Lampeão. São muitas as estórias que circulam na oralidade, dando conta que ao não encontrar um adversário que procurava para cobrar dinheiro ou tomar satisfações, o cangaceiro humilhava, feria ou matava quem encontrasse, que fosse do mesmo sangue. Em Olindina, antes Nova Olinda e mais remotamente Mocambo, na Bahia, onde o Conselheiro construiu igreja e cemitério, conta-se que o grupo de Lampeão obrigou as moças a dançarem a “dança do dedo”, usando os dedos das mãos, alternadamente, entre a boca e o cu, enquanto a rapaziada cantava, dando ritmo ao movimento das mãos. Dizia-se, também, que um velho morador daquele lugar ficou de quarto, recebeu sela, e foi esporado por um dos rapazes do grupo. “Rapazeada de Belém quando os macacos chegarem digam que eu vou por aqui por este sertão além cantando, gozando, amando e querendo bem.” A informação foi dada no jornal O Rosário, de 30 de outubro de 1936, pelo padre Artur Passos, que foi vigário de Porto da Folha e conheceu Lampeão e seus rapazes em Poço Redondo, em 1929. 68 anos depois de morto, Lampeão vive na memória do povo.
Não se trata de anomalia comportamental dos cangaceiros de Lampeão. Marcar o rosto com a brasa do ferro era uma pena antiga, do reino português, que Dom João III, o piedoso (1521-1557) extinguiu, através do Alvará de 27 de fevereiro de 1523, mas que voltou a vigorar com as Ordenações Filipinas, conjunto de leis e penas vigorante durante a ocupação espanhola em Portugal. Diz a lei:
Também se ouvia dizer que o próprio Virgulino Ferreira da Silva aprendeu ali a tocar concertina, pequena sanfona de 8 baixos, também conhecida como “pé de bode”, usada para animar as festas das noites luarentas do Nordeste. Atribuiu-se, ainda, a Lampeão a frase amando e querendo bem, que parece ter origem numa sextilha recitada pelo cabra Mariano, depois de uma incursão pela Fazenda Belém, no município de Porto da Folha:
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