Liberdade Profissional do Treinador de Futebol

Uma das situações que sempre chamou a atenção, pelo que parecia de arbitrário e ilegal, era a de exigência de que treinadores de futebol, para poder exercer livremente essa profissão, comprovassem inscrição no Conselho Regional de Educação Física.

Aqui mesmo, em Sergipe, chegamos a nos deparar com ocasiões de constrangimento, como aquela em que o então treinador do Grêmio, Vanderlei Luxemburgo, foi quase impedido de exercer o seu trabalho em partida oficial pela Copa do Brasil de 2012 contra o River Plate, no Estádio Lourival Batista, o “Batistão”.

O pressuposto jurídico subjacente a essas exigências é o de que para o exercício da profissão de treinador de futebol é indispensável a formação em nível superior em curso de educação física e a consequente inscrição no conselho profissional respectivo.

No final do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça julgou um recurso em que essa temática esteve envolvida. Boa oportunidade para, mais uma vez, debatermos o tema da liberdade de exercício profissional (o que já fizemos aqui mesmo na Infonet, relativamente às profissões de jornalista, advogado e músico), agora debatendo a liberdade de profissão do Treinador de Futebol.

Liberdade de Trabalho, Ofício ou Profissão: direito fundamental

A liberdade de exercício profissional é assegurada pela Constituição da República em seu Art. 5°, inciso XIII:

Art. 5° (…)

(…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Ou seja: a Constituição assegurou a liberdade de exercício profissional, no sentido de vedar peremptoriamente ao Estado (ou aos particulares) a imposição de exercício de determinado trabalho, ofício, ou profissão, contra a vontade do indivíduo. É nesse sentido que essa norma vem sendo interpretada, inclusive tendo em vista situações ocorridas em Estados Totalitários, que se arvoram no poder de impor aos indivíduos que atividades profissionais deverão desempenhar. É o típico organicismo de Estados Totalitários, que entendem o indivíduo como mera engrenagem do poder estatal, como mera peça de um todo orgânico, à sua total e inteira disposição. A Constituição Democrática de 1988, portanto, em sentido diametralmente oposto, garante ao indivíduo o direito de livre escolha quanto à profissão que deseja seguir, quanto à vocação a que pretende dar vazão, quanto às atividades que intenta cumprir, ao seu livre arbítrio, sem interferência estatal ou de terceiros (Claro que, numa sociedade capitalista, ainda que o Estado não interfira, essa liberdade de escolha não será tão ampla, tendo em vista as injunções de mercado).

Todavia, apesar de a norma constitucional assegurar essa livre escolha, essa não-interferência estatal, a mesma norma (e aí levando em conta o interesse público, o interesse geral da sociedade) admite que a legislação infraconstitucional imponha qualificações profissionais que devem ser atendidas por quem queira exercer determinado trabalho, ofício ou profissão. Assim, o que a Constituição expressamente admite é que a sociedade, por decisão democrática direta ou de seus representantes, aprove, por meio de lei, exigências que devem ser atendidas para o exercício de certas atividades.

Qualificação profissional exigida em lei para o exercício profissional da Educação Física (Lei n° 9.696/1998)

Pois bem, a sociedade entendeu (e decidiu, por meio de seus representantes eleitos) que o exercício profissional da Educação Física não deveria ficar totalmente livre, devendo ser restrito àqueles profissionais regularmente registrados nos Conselhos Regionais de Educação Física (Art. 1º da Lei n° 9.696/98), e que somente podem obter esse registro os profissionais possuidores de diploma obtido em curso de Educação Física, oficialmente autorizado ou reconhecido, possuidores de diploma em Educação Física expedido por instituição de ensino superior estrangeira, revalidado na forma da legislação em vigor ou os que, até a data do início da vigência da Lei (02/09/1998), tivessem comprovadamente exercido atividades próprias dos Profissionais de Educação Física, nos termos estabelecidos pelo Conselho Federal de Educação Física (Art. 1°, incisos I, II e III).

Dentre as competências do Profissional de Educação Física descritas na lei (Art. 3° – coordenar, planejar, programar, supervisionar, dinamizar, dirigir, organizar, avaliar e executar trabalhos, programas, planos e projetos, bem como prestar serviços de auditoria, consultoria e assessoria, realizar treinamentos especializados, participar de equipes multidisciplinares e interdisciplinares e elaborar informes técnicos, científicos e pedagógicos, todos nas áreas de atividades físicas e do desporto), nenhuma que direta ou indiretamente afete a atividade de treinador de futebol.

Liberdade para o exercício da profissão de Treinador de Futebol (Lei n° 8.650/1993)

Já com relação à profissão de Treinador de Futebol, a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, decidiu que embora preferencialmente deva ser exercida por portadores de diploma de cursos de Educação Física, é uma profissão de livre exercício por qualquer pessoa, no que, parece-me, decidiu acertadamente, tendo em vista que a Profissão de Treinador de Futebol não possui potencialidade de causar “perigo de dano à coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros, sem culpa das vítimas, tais como a medicina e demais profissões ligadas à área de saúde, a engenharia, a advocacia e a magistratura, dentre outras várias” (trecho de voto do Ministro do STF Gilmar Mendes no julgamento do RE n° 511961, no qual aponta os pressupostos de razoabilidade de exigências legais para o exercício de profissões), a não ser apenas danos passionais aos fanáticos torcedores (dentre os quais me incluo) dos seus respectivos times.

É o que dispõe o Art. 3° da Lei n° 8.650/1993:

Art. 3º O exercício da profissão de Treinador Profissional de Futebol ficará assegurado preferencialmente:
I – aos portadores de diploma expedido por Escolas de Educação Física ou entidades análogas, reconhecidas na forma da Lei;
II – aos profissionais que, até a data do início da vigência desta Lei, hajam, comprovadamente, exercido cargos ou funções de treinador de futebol por prazo não inferior a seis meses, como empregado ou autônomo, em clubes ou associações filiadas às Ligas ou Federações, em todo o território nacional.

A mesma lei define as atribuições da profissão de Treinador de Futebol (treinar atletas de futebol profissional ou amador, ministrando-lhes técnicas e regras de futebol, com o objetivo de assegurar-lhes conhecimentos táticos e técnicos suficientes para a prática desse esporte – Art. 2°), bem como assegura o seu direito à ampla e total liberdade na orientação técnica e tática da equipe de futebol (Art. 4°, inciso I). Como bem se percebe, atribuições diferenciadas das atribuições do Profissional da Educação Física.

Aliás, quem acompanha minimamente o universo do futebol, conhece a realidade de que as comissões técnicas dos times são formadas por treinadores e preparadores físicos, em trabalho que deve ser articulado e coordenado, juntamente com o de outros departamentos, como o médico, por exemplo, cada qual dentro de suas tarefas específicas.

Decisão do STJ no Recurso Especial n° 1383795

A matéria jurídica, relativa à interpretação das leis federais, foi examinada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Resp n° 1383795, por meio do qual o Conselho Regional de Educação Física de São Paulo se insurgiu contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que negou provimento a ação civil pública que propôs em face do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo.

Na ementa, transcrita a seguir, é perceptível que o STJ descreveu com acuidade que, tendo em vista a inexistência de lei que restrinja a liberdade de exercício da profissão de Treinador de Futebol, a exigência de que seja inscrito no Conselho Regional de Educação Física para poder exercer o seu ofício é descabida e arbitrária, como suspeitamos desde sempre:

ADMINISTRATIVO E DESPORTIVO. MONITOR E TREINADOR DE FUTEBOL. EX-ATLETAS. INSCRIÇÃO NO CONSELHO REGIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA. DESCABIMENTO. EXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA QUE DISPÕE SOBRE A ATIVIDADE (LEI N. 8.650/1983). AUSÊNCIA DE CORRELAÇÃO COM AS ATIVIDADES DESCRITAS NA LEI GERAL (LEI N. 9.696/1998).
1. O expressão "preferencialmente" constante do caput do art. 3º da Lei n. 8.650/1993 (lei específica que dispõe sobre as relações de trabalho do Treinador Profissional de Futebol) tão somente dá prioridade aos diplomados em Educação Física, bem como aos profissionais que, até 22 de abril de 1993 (data de início da vigência da lei), comprovem o exercício de cargos ou funções de treinador de futebol, por no mínimo 6 meses, em clubes ou associações filiadas às Ligas ou Federações, em todo o território nacional. Assim, quanto ao exercício da profissão de treinador profissional de futebol, a Lei n. 8.650/1993 em nenhum momento coloca restrição aos não diplomados ou aos que não comprovarem o exercício do cargo ou função por prazo não inferior a seis meses.
3. A Lei n. 9.696/1998 (lei geral que dispõe sobre a regulamentação da Profissão de Educação Física e cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Educação Física) define que apenas profissionais com registro regular no respectivo Conselho Regional poderão atuar na atividade de Educação Física e receber a designação de “Profissional de Educação Física”, mas não traz, explícita ou implicitamente, nenhum comando normativo que determine a inscrição de treinadores e monitores de futebol nos Conselhos de Educação Física.
4. A competência que o art. 3º da Lei n. 9.696/1998 atribui ao “Profissional de Educação Física” não se confunde com as atividades técnicas e táticas precipuamente desempenhadas por treinadores e monitores de futebol.
5. A Lei n. 9.696/1998 (lei geral) não tem o condão de revogar a Lei n. 8.650/1993 (lei específica ), porquanto não se fazem presentes os requisitos exigidos pelo art. 2º, §§ 1º e 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
6. No tocante às Resoluções 45 e 46, de 2002, do Conselho Federal de Educação Física, não cabe ao STJ interpretar seus termos para concluir se tal ato normativo subalterno se amoldaria ou extrapolaria a Lei n. 9.696/1998, uma vez que não compete a esta Corte interpretar atos normativos destituídos de natureza de lei federal. Todavia, leis não se revogam nem se limitam por resoluções. Se tais resoluções obrigam treinadores e monitores de futebol não graduados a se registrarem em Conselho Regional de Educação Física, estarão extrapolando os limites da Lei n. 9.696/1998.
7. Não se permite ao CONFEF e ao CREF4/SP realizar interpretação extensiva da Lei n. 8.650/1993 ou da Lei n. 9.696/1998, nem exercer atividade administrativa de ordenação (poder de polícia) contra treinadores e monitores de futebol, ex-atletas não diplomados em Educação Física, sob pena de ofensa ao direito fundamental assecuratório da liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais estabelecidas em lei, nos termos do art. 5º, XIII, da Constituição Federal.
Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, improvido.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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