LITERATURA ORAL, UM MUNDO DE CULTURA (V)

O Brasil foi, num certo sentido, um laboratório de raças e de culturas. Produziu o mestiço, dando-lhe uma feição universal, mas não conseguiu consagrar a igualdade social, nem mesmo eliminar as discriminações da cidadania desigual. Tomado o exemplo biológico, da resposta genética, o próprio País tornou-se injusto e frio com seu produto — O mestiço, para atrair novos brancos, oriundos da Europa, na recolonização do século passado.


O mestiço sobrou, muitas vezes como páira, desempregado, excluído dos processos do desenvolvimento. É nítida, nas áreas rurais do Norte e do  Nordeste, do Sul e do Centro-Oeste, ou nas zonas urbanas de alta concentração humana, a desigualdade social. Não há o Brasileiro, personagem real da história, como sujeito na construção da realidade. Há uma variedade de Brasileiros, povoando os vários Brasis, como não há uma cultura universalizada ou universalizante, que premie toda a contribuição das partes humanas que formaram o País, valendo-se da língua mestra, dominante sobre as demais.


Lampião em passagem por Sergipe em 1929
Evidentemente que personagens vencidos, nas insurgências da história, deixaram nome e fama na memória do povo. Antonio Mendes Maciel, o bom Jesus Conselheiro, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampeão, rasgaram com suas alparcatas as trilhas espinhosas das caatingas sertanejas, com seus seguidores, perdidos do tempo e da marcha do País. O belo Monte Santo, no sertão da Bahia, tornou-se um cenário das mais emocionadas refregas, onde homens e mulheres simples, tomados de uma ira santa, enfrentaram armas e poder, com o pensamento fixo no paraíso.


Poucas vezes, na história humana, um pedaço do povo sonhou tão alto a utopia da felicidade, da fartura, da salvação, quase como a repetir o gesto audaz do jovem Rei Dom Sebastião, que tombou sem vida no Marrocos, emprestando na sua espada a coragem da luta pela vitória do cristianismo, contra os infiéis Africanos.


Poucas vezes um pedaço do corpo social Brasileiro sofreu tanto a adversidade da história, sob o terror dos dominadores. A página de Canudos se insere na história do Brasil, como um retrato da tragédia dos fracos, como a saga dos cangaceiros reflete a ousada rebeldia do sem-terra, constituídos em força ilegal, no desafio provocador ao poder.


Mortos, com as cabeças decepadas, os homens e as mulheres do cangaço deram entrada, no panteão da história, pelas estórias, cantigas, rezas e fatos que passaram a ser, nas noites solidárias do Nordeste, os assuntos preferenciais do povo. O tempo não injuriou, ainda, Conselheiro, nem trapaceou com Lampião. Mas, ao contrário, tanto mais passa, mais o tempo deixa um rastro antigo dessas pessoas, na memória social do Brasil.


Não se formou, portanto, um imaginário próprio, que fosse a expressão legítima do povo Brasileiro, como mostruário de cultura. Predomina, como um bem depositado nas lembranças do mais fiel dos depositários, o repertório universal, como um bem elaborado pacote da Idade Média, destinado a nutrir com a seiva do mais antigo passado, a formação da sociedade Brasileira. Diversa e complexa, como são os códigos, a herança medieval no Brasil não pode ser lida na linearidade fácil.
É preciso, e será preciso sempre, buscar-se na emblemática, no símbolo, os modos múltiplos de decifração dos repertórios. (Continua)

 

Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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