A identificação dos arquétipos, a compreensão dos contextos históricos, étnicos, religiosos, políticos, a interpretação das mentalidades, tudo se justifica para elucidar a trama do tecido cultural brasileiro. Enquanto não há pesquisa, tudo continuará funcionando aos ouvidos atentos, pelo toque mágico do “Era Uma Vez…”. A decodificação da cultura é um processo que tem duas fases distintas e igualmente importantes: a da identificação do Fato Cultural, com toda a complexidade de sua procedência, e do valor que a ele corresponde, como agregado moral, que tanto a pessoa, como os grupos sociais, acrescentam. Deste modo, o Fato Cultural é, em si mesmo, um evento da história, mas é, também, uma representação moral do seu convívio. Ao adotar certos e determinados provérbios, por exemplo, o ser ou o grupo atribui uma preferência, que tanto refaz o itinerário da vigência dos fatos, como o regenera e o nutre com o valor da escolha. Tomando a literatura oral como fonte de exemplo se poderá encontrar, na “Festa no Céu”, tanto o fato — A tartaruga do Panchatantra, ou o cágado, na memória Brasileira — como o valor a ele atribuído, em tempos, lugares e situações diversas. Na estória Indiana, a tartaruga tem nome, tem dois cisnes amigos, igualmente nominados, tem um ambiente próprio à sua sobrevivência e tem um grupo de cidadãos, que interferem no fato. E tem, também, o fundo moral, laico e certamente ajustado à vida social do lugar. No conto Sergipano, o cágado, é o animal semelhante, não tem nome, nem tem amigos e sua morte é determinada por outros animais: a garça, na versão de Sílvio Romero, o urubu, na versão em uso comum. A moral religiosa impôs, ao final do conto, que somente a onipotência de Deus, ou a intercessão de Nossa Senhora, que é mãe de Deus, seriam capazes de preservar a vida animal, justificando-lhe a feição, para assim ser mais simples à compreensão de todos. Não há nada, no horizonte da cultura, que não carregue a conotação do valor que o usuário, criador ou intérprete, agrega. Essa axiologia é da mais alta relevância que seja vinculada aos fatos da cultura, como molde complementar da leitura interpretativa. É uma relação constante, que o tempo não altera, e que não descende, tão somente, da herança tradicional que a oralidade e a escritura lograram trazer para o povo Brasileiro. Ou seja: A cultura não está nunca isenta dos valores, como nunca estará alheia aos sentimentos e as emoções que comanda a vida, especialmente no trânsito do ser perante os fatos que fazem rir e os fatos que fazem chorar, ou, ainda, os fatos que causam espanto e os que despertam admiração, os que provocam o repúdio e os que alimentam e exaltam a coragem da aceitação consciente. A cultura tem cheiro, tem gosto, tem tudo o que é próprio da vida e do ser no mundo. Por isto mesmo a sua representação, seja pela via elaborada dos textos, seja pelos improvisos dos cantadores de viola, emboladores de coco, seja pelas evoluções das danças e dos folguedos, ou nas representações dos autos, será sempre pulsante, dinâmica, atraente, sedutora. E por mais que variarem os meios de difusão, haverá sempre uma base, servindo de fonte, a fornecer as matrizes, onde os fatos e os valores serão inseparáveis, como fundamentos de uma mesma verdade, sem a qual nenhum povo constrói seu dia seguinte. Nas escolas, como nas bibliotecas, nas feiras de livros, nos ambientes de criação e de reprodução literária, a cultura é o espelho revelador das identidades, como na história ela é a experiência. Não importa, por um lado, que as bibliotecas, as livrarias, as feiras de livros, estejam cheias de antigas coleções, onde reis piedosos, belas e castas princesas, aguardam tranqüilos a chegada de um príncipe valente, belo e bem vestido, para casar e ser feliz. Com certeza existirão, no fundo negro das páginas, os ambientes enfumados, onde velhas e vilões ajudam a compor os cenários, valorando a realeza. Não importa que as religiões tenham mudado a geografia do mundo antigo e que já nem prevaleçam, com retrato histórico do povo, as coleções dos fatos vencidos pelo tempo, pois o que importa mesmo é saber que tais livros, tais estórias, carregam as suas próprias memórias. Importa reconhecer que é dessa forma que se traça o arco do passado, com seus contornos, cartográficos e humanos, donde vem a voz dos portadores de vozes, vem as formas visuais da comunicação possível, como vem, todas as noites, a luz velha das estrelas e constelações, na toalha de um céu que sempre achamos novo. (Continua)
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