Livre-nos, Deus, dos mal-amados e dos mal-comidos!

O noticiário da semana comentou alguns crimes passionais, como se fora algo novo entre o conviver dos homens.

 

Em Aracaju, um policial armara-se de valentia para ameaçar a esposa adúltera e seu amante, um corretor de imóveis, e por este é morto com infalível pontaria: um tiro na cabeça, outro no corpo; ambos fatais.

 

Uma tragédia com signos de comédia, porque o policial não chegara a usar o seu instrumento de ofício e o vendedor de imóveis portava ilegalmente um revólver com excelente mira.

 

Já no interior do Estado, em Santa Rosa de Lima-Sergipe o trágico se fez medieval. Em meio a muitas alegrias de uma festa acontecida na madrugada de domingo nove de maio, um político degolou a ex-esposa na faca, a ferro frio como se afirma no jargão sertanejo.

 

No sul do país, um homem tentara matar a ex-esposa e não conseguiu. A vítima foi socorrida e levada a um pronto-socorro. O agressor invade o hospital e atinge com sucesso a sua jura, matando sua amada no leito de cura.

 

Fatalidade ou casualidade nestes crimes de natureza sexual?

 

Ou causalidade corriqueira de crimes ocorridos e recorridos por conta de um amor sofrido que não dá pra ser repartido? Crimes que o racional deveria execrar, mas o compreende e lamenta, e sempre perdoa; afinal ninguém pode perquirir o coração humano diante do abandono do ser amado, e nos moldes como tudo acontece.

 

É muito difícil conhecer o mecanismo cerebral do outro; o que se passa no seu pensamento, seus valores, angústias e desejos.

 

Quanto vale a dor no amor ferido? Será simples conseguir reagir em desamor e indiferença, diante da própria ambiência e de sua ciência, que negligencia a displicência e aplaude a indecência; do outro, sempre do outro que mal amou?

 

Apaixonar-se, eis a grande questão que só vinga enquanto há reciprocidade. E nos casos acima relatados, vê-se que o amor se existiu, o respeito múltiplo deixou de acontecer, sem o qual os homens são capazes de tudo.

 

Veja-se, por exemplo, Euclides da Cunha, um homem de alta honorabilidade intelectual e moral; um pesquisador, disposto a se contaminar em malárias da Amazônia e a se embrenhar nas caatingas arranhentas de Canudos.

 

Euclides que não cedera diante do inferno verde, longínquo, misterioso e inacessível. Que não temera descrever o heroísmo de um punhado de miseráveis, com rala munição e meia cuia de amido por ração, defendendo só a alma e a salvação. Que escreveu a maior poesia épica brasileira, não isentara a própria vida do opróbio e da humilhação.

 

Porque Euclides em tantas viagens, repetidas e necessárias, tivera a suprema infelicidade de amar quem não lhe queria bem. E por pior, não o respeitava, nem o admirava, manchando-o no próprio leito.

 

Mas, a despeito de excedente mediocridade em condescendente cumplicidade, a sociedade, de ontem e de sempre, acha uma graça inviril nas façanhas adulterinas.

 

Porque a sociedade é sempre dura com os traídos na cama e no casamento. O tálamo conspurcado permuta o sublime pelo indigno, rejeitando a candura pela cana dura do fanfarrão tesudo, repleno de excitação.

 

E os homens, sem exceção trocariam parte de tudo por uma maior tesão, de jegue se possível, sem respeitar cercas de arames ou convenção infames, afinal, por mais deletério que libertário, a modernidade entende a liberdade acima da responsabilidade, gritando que ninguém é dono de outrem para lhe exigir exclusividades em promessas de fidelidades.

 

E por assim pensar e tolerar, a canalha sempre grita como a canção: “Lá vai ele, com a cabeça enfeitada!” Porque ao traído sempre falta algo, sobrando-lhe escárnios e desprezos: Porque “uma vez corno, eternamente corno”, mancha nunca desaparecida. A não ser que seja “enxaguada em sangue”, no duelo como antigamente, ou a fio de espada como o Agamêmnon da Ilíada, carregando um mundo contra outro, para cerzir um amor fendido.

 

E se há homens convencidos ou mal resolvidos, sobejam os que, sem surpresa, estão dispostos ainda a lavar a honra com o sangue da infidelidade lasciva.

 

Homens como Euclides da Cunha, infelizes, que fora com arma em punho assassinar o amante da sua esposa. E foi morto por este, em legítima defesa, conforme transitado e julgado pela justiça dos homens. Tragédia repetida nos mesmos moldes pelo filho de Euclides que ousara completar o intento paterno e foi também assim assassinado pelo amante de sua mãe. Mulher que permaneceu teúda do assassino do marido e depois do próprio filho, até que o seu rufião amado dela se cansasse e a abandonasse.

 

Há! Como seria fácil se as rusgas do amor se resolvessem no abandono simples dos corpos lassos! Mas, não é assim! Os delitos do amor se sucedem e não se explicam mesmo em plena modernidade das relações fugazes do fica com um e com qualquer um, como o recente acontecido no noticiário.

 

Há também situações em que só a suspeita e o ciúme se não levam aos estertores do crime, conduzem ao desamor e a infelicidade. Em Machado de Assis, por exemplo, sem haver um desfecho criminal, o mal perdurou, só com uma insinuação passageira de infidelidade.

 

Sem nunca explicitar um fato censurável de Capitu, a dúvida vingou frondosa em Bentinho tornando-o casmurro, modorrento, empeçonhando a todos com o veneno da dúvida.

 

E até as versões televisivas de Dom Casmurro só dão IBOPE se as encenações contemplarem esfregações tórridas, de maneira a fazer com que os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu transpareçam gozos lascivos ao contemplar Escobar.

 

Mas, como diria Iago, o fascinante personagem de Shakespeare: “Acautelai-vos, senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive. Vive feliz o esposo que, enganado, mas ciente do que passa, não dedica nenhum afeto a quem lhe causa o ultraje. Mas, que minutos infernais não conta quem adora a dúvida, quem suspeitas contínuas alimenta e ama deveras!

 

Ou ainda, com a mesma voz sem falsete: “As ninharias leves como o ar, para quem tem ciúmes, são verdades tão firmes como trechos da Sagrada Escritura”.

 

Mas a sociedade, que já não crê no Pentateuco, nem admira o que vem dali ao Apocalipse, encampa a luta das agressivas feministas no afã do seu justo Direito, repetindo a exaustão o grito inerme de Desdêmona: “É contra a natureza dar a morte a alguém por ter amor”.

 

Sim, é verdade! Mas, enquanto ser perdidamente enamorado, ferido na sua essência por uma rejeição insinuada, Otelo grita contra toda e qualquer racionalidade: “Já valente não sou; qualquer menino me desarma. Deve a honra viver mais que a virtude? Que leve o demo tudo”.

 

E a tragédia encerra com vasta hemorragia sem perdão e sem deixar lição por antídoto nas rejeições passionais. Igual ao visto no recente noticiário com um policial bancando o autor de Os Sertões, e o vereador se valendo de Otelo, o mouro louco de Veneza, com ressalvas para Desdêmona, que só ela, restou pura e mais bela.

 

Assim, as histórias de Otelo, de Euclides da Cunha e de Dom Casmurro se repetem no teatro canastrão da vida, só para citá-las sucintamente.

 

Há, porém, desfechos mais longos e não menos sofridos. O russo Leão Tolstoi talvez tenha sido quem mais elegantemente narrou o drama do desamor, do amor não correspondido, da traição e do adultério. Ali, porém, não há vinganças nem duelos. Também não há cenas descrevendo exuberância de atletismo sexual. O marido traído sai de cena retirando-se da vida de Anna Karênina, que larga a família e o conforto por um Wronski, imerecido. E o desfecho é a solidão dos rejeitados. Quem ama muito, sempre pode padecer demais com a vida ceifada na bala, a ferro frio ou nas rodas de um trem esmagada.

 

Mas, independente de esmagamentos, o noticiário falou também de um cadáver de mulher encontrado bem arrumado, amassado numa mala. Reedição de um velho crime; um antigo delito passional: o crime da mala.

 

Os crimes de amor são terríveis! E às vezes eles nos são próximos; inexplicáveis.

 

Eu tive uma aluna que morreu assassinada por um término de namoro. Ela era uma excelente aluna; organizada, bem criada, inteligente, disciplinada e perfeccionista. Possuía uma beleza sóbria, um comportamento irrepreensível, reservado. Estou a vê-la após as minhas aulas esperando pacientemente o automóvel do pai para o almoço no seu lar. A cena era diária; pai e filha iam e voltavam do campus universitário, em abraços e sorrisos. A garota, uma fonte de alegria para a família, seria, sem nenhuma dúvida, um sucesso na profissão escolhida. O namorado, porém, acabou tudo, impedindo a realização de todos os sonhos. A notícia foi sabida depois. O rapaz atirou na cabeça da menina e depois na sua própria têmpora, num Romeu e Julieta equivocado. Só porque não lhe era o mais amado, sem haver uma culpa ou um pecado, matou a garota e se matou.

 

Que terrível! Como é difícil saber o que se esconde nas mentes dos apaixonados?

 

“Quem ama não mata!” Grita novamente o slogan querendo ser antídoto de racionalidade.

 

Mas, quem ama perdidamente sempre pode matar. E mata! E continua matando como o recente noticiário! Basta que lhe sobre a vontade e o desejo de matar.

 

E o desejo de matar incide tanto no homem como na mulher quando o amor é ferido. Que o diga o presente em chocolate envenenado de uma mulher a sua rival, matando uma criança na cidade de Itabaiana-Sergipe.

 

Por acaso tudo isso é fato novo que não será repetido?

 

Deus nos livre dos amores maus e enlouquecidos!

 

Livre-nos, Deus, dos mal-amados e dos mal-comidos!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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