Sabe aquele dialeto que falamos em família, usando palavras ou expressões peculiares que tornam mais fácil identificar situações e coisas? O jeito de falar e o costumeiro vocabulário usado no ambiente tornam a comunicação mais direta e compreensível. Algo parecido se dá quando você tem contato com uma história que de alguma forma tem relação direta com a sua vida, uma história que conta aventuras e desventuras vividas no seu lugar e no seu tempo. Ainda mais quando personagens dessa história são pessoas com quem você ainda pode esbarrar e dirigir a elas um bom dia.
Essa é a primeira sensação que passa a leitura de “Memórias da resistência” (Criação Editora), livro recém-lançado pelo professor Jorge Carvalho do Nascimento, escrito para contar como foi organizada em Sergipe a oposição à ditadura que se implantou em 1964 e como os personagens dessa narrativa tornaram-se protagonistas, inclusive, talvez principalmente, porque tiveram como abrigo o guarda-chuva do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB.
Como o autor reconhece, não é estudo historiográfico no sentido estrito, mas um relato de memórias, de experiências vividas, muitas das quais contadas a ele próprio em entrevistas concedidas em 2008, quando Jorge Carvalho planejava lançar o livro. A bibliografia não é extensa, mas é densa a pesquisa na hemeroteca aos jornais sergipanos dos anos 60 a 80 do século passado. Leitura agradável, sem nenhuma intenção de suavizar a gravidade do tema.
O fio da meada foi puxado pelo jovem deputado federal José Carlos Teixeira, que vinha do PSD e contava apenas 30 anos de idade em 1966, quando o presidente Castello Branco extinguiu todos os partidos políticos e instituiu o bipartidarismo. Quase a totalidade da classe política e empresarial, inclusive os ex-governadores à exceção de Seixas Dórea, todos oriundos da UDN, principalmente, e do PSD e PR, filiaram-se festivamente à Arena, o partido do governo militar. A imprensa também estava em peso do lado de lá.
Coube a José Carlos Teixeira juntar o que foi possível para formar o partido da oposição, o MDB. Militantes e poucos parlamentares do PTB e do PSB, alguns do PSD e do PR, além dos proscritos da esquerda, inclusive os comunistas do PCB, constituíram o núcleo inicial do novo partido, que contava com outros dois deputados federais, Ariosto Amado e Walter Batista, com apenas dois prefeitos do interior, cinco vereadores de Aracaju e nenhum dos 32 deputados da Assembleia Legislativa de então.
“Os que estavam enfrentando a ditadura no MDB naquela época eram os discriminados, os que não tinham direito a nada, os perseguidos, os chamados marginais para o regime militar”, recorda Jackson Barreto, que ingressou no partido no final dos anos 60, quando era estudante de Direito na Universidade Federal de Sergipe, e se tornou a principal liderança do partido a partir da segunda metade dos anos 80.
Foi recorrendo à fundamental assistência do pai, o empresário Oviedo Teixeira, e dos irmãos da Norcon, pautado pelas próprias convicções e coragem, que José Carlos firmou-se como líder da resistência ao regime. Outros personagens importantes foram Jaime Araújo, Leopoldo Souza, Antônio Cabral Tavares, Umberto Mandarino e os irmãos Tertuliano e Guido Azevedo.
“Lembro de José Carlos Teixeira jovem, em 1966, lutando para organizar o Movimento Democrático Brasileiro. (…) Ele estava na Praça Camerino, sobre a carroceria de um caminhão, dando um discurso, conclamando a juventude a se filiar ao MDB. (…) A maioria passava, mas eu fui dos poucos que parou para ouvi-lo. (…) Eu fiquei observando a coragem daquele homem, fazendo aquela conclamação, criticando o governo”. Rosalvo Alexandre tinha 17 anos e era secundarista no Atheneu Sergipense quando presenciou a cena que definiu sua opção pela política.
Uma das maiores dificuldades do partido da oposição era organizar chapas para disputar as eleições. Quem conquistava algum mandato podia desenvolver alguma atividade política, mas a maioria dos profissionais e empresários evitava associar o nome ao MDB, temendo as retaliações que inevitavelmente sofreriam.
Daí a importância da participação dos estudantes, principalmente do curso de Direito, como Jackson Barreto, Jonas Amaral, João Augusto Gama da Silva, Wellington Mangueira, Benedito de Figueiredo, Wellington Paixão, Jackson de Sá Figueiredo e Abelardo Souza. A maioria deles tinha relação com o Partido Comunista. Ativos, eles levavam a pauta comunista para dentro do partido onde podiam atuar legalmente e agitavam a juventude refratária ao regime.
“Ele fez uma escola de políticos. Ele não deixou esmorecer, não deixou morrer a chama da esperança juvenil. Este foi o grande embate que a ditadura enfrentou em Sergipe. Mesmo tentando, a ditadura não conseguiu sufocar a esperança. Gente como José Carlos Teixeira não permitiu que isso acontecesse”, depõe Benedito de Figueiredo. Posteriormente, já no início dos anos 70, foi criada a Ala Jovem, agregando outros estudantes de Direito da UFS que também fizeram escola no MDB.
Em meio a pressões de todos os tipos, que incluíam desde violência física à cooptação dos seus quadros, o MDB sergipano conseguiu em 1974 um feito que marcou sua história e fortaleceu o partido na luta contra a ditadura: a eleição para o Senado do jovem médico João Gilvan Rocha, derrotando o ex-governador Leandro Maciel, da Arena. “Gilvan Rocha foi um senador brilhante, que ajudou a mudar a história política de Sergipe. Ele fez parte daquele grupo de senadores eleitos em 1974, criando o maior problema político para a ditadura militar”, lembra Jackson Barreto.
Em fevereiro de 1976, um grande revés: a Operação Cajueiro. Desde o ano anterior, a linha dura endureceu o regime e a ordem era dizimar o proscrito PCB, que continuava exercendo influência em diversos órgãos da sociedade e do Estado, mantendo representação nos parlamentos municipais, estaduais e federal, através do MDB. No bojo desse recrudescimento da onda anticomunista, foram assassinados nas celas do DOI-CODI, em São Paulo, o jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e o operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976.
Na véspera de Carnaval, uma força especial vinda da Bahia, sob as ordens do general Adyr Fiúza de Castro, comandante da 6ª Região Militar, prendeu arbitrariamente 25 sergipanos. O quartel do 28º Batalhão de Caçadores foi palco de torturas. Foram processados com base na Lei de Segurança Nacional 18 dos presos, além do então deputado estadual Jackson Barreto.
Calejado na luta, o MDB tornou-se o avalista da campanha que culminou com a Lei da Anistia em 1979. Depois da reforma partidária, quando passou a se chamar PMDB, liderou a campanha pelas Diretas Já, que resultou na eleição (indireta) de Tancredo Neves em 1985.
“Foi o nosso coração, foi o nosso pulmão, foi sem dúvida alguma a porta e a janela que nós encontramos para poder respirar e para poder ter uma atuação capaz de suportar os anos de chumbo. O MDB teve um papel extraordinário na vida de muitas pessoas em Sergipe e no Brasil”, resume Jackson Barreto.
História de heroísmo, diferente da construída pelo sucedâneo PMDB, que passou quase ininterruptos 33 anos na cabine de comando do país, do marimbondo de fogo José Sarney ao oportunista Michel Temer. O partido que nasceu lutando contra o poder aprendeu a gostar do poder mais do que qualquer outro. Mas tem uma bela história que agora foi contada.