D. Zélia, mas pode chamar de Ailezz

Marcos Cardoso*

Quando alguém com pretensão literária pode realmente ser reconhecido como escritor ou escritora? Se o sucesso com o público leitor é o argumento principal desse reconhecimento, então temos em Sergipe uma mulher que de fato assim pode ser aclamada. O nome dela é Maria Zélia Silva Rocha, mas pode chamar de Ailezz, uma senhora escritora.

Ela nasceu em Propriá há quasse 90 anos, a serem completados no próximo janeiro, e só lançou o primeiro de muitos livros aos 75 anos. É uma escritora prolífica, que passeia com rara habilidade poética por todos os caminhos da literatura, do romance ao conto, da crônica às histórias infantis, que são seus livros de maior sucesso. Sem menosprezo das artes plásticas, pois também é pintora e escultora.

Ailezz fala: “Eu não tinha pretensão de ser escritora. Comecei fazendo uma história para a neta de sete anos. Quando tinha seis histórias prontas, lancei o primeiro livro, ‘Zelinha me contou’”. Foi um sucesso, que se seguiu de outros. Seus livros infantis, alguns adotados por escolas públicas e privadas, invariavelmente ensinam as crianças a gostarem de ler.

Na obra “O bicho livro”, de 2011, uma menina que não gostava de ler teve um diálogo inusitado com… o livro:

“— Por que você sabe tudo e pensa, se não tem cabeça? — perguntou ela. E caminha e até viaja sem ter dinheiro? E fala como uma pessoa, se não tem boca? E gesticula ao contar suas histórias e até gosta quando alguém acha graça? E fala de abraços, se não tem braços? E caminha e brinca nas suas histórias como as crianças, e não tem pés?”.

A literatura é variada, mas tudo que Ailezz toca tem poesia. No livro “A borboleta azul”, de 2015, Pedrinho um dia pergunta a Dona Borboleta quem foi o artista que a desenhou.

“No meu reino existe um Senhor Pintor que não se mostra; trabalha calado. As suas mãos são tão leves que não sentimos quando pintam nossas asas. Sua voz não ouvimos, mas, com a sonoridade dos ventos a nos balançar, acreditamos no seu canto”, responde a orgulhosa borboleta.

Mas nem pense o desavisado que Ailezz só escreve para crianças. No livro de contos e crônicas “Estou nas nuvens”, de 2018, que a autora assina como Flora Liz, ela dá margem a uma linguagem mais atrevida, como diria Nélida Piñon, a sua escritora favorita. No conto “Amigas da alegria”, três jovens senhoras sobem os degraus da igreja do Senhor do Bonfim para pedir a graça de arranjarem namorados, quando uma delas quase é atropelado por um homem numa bicicleta azul. Segue o texto:

“Tudo nele era azul, a bicicleta, a roupa, os óculos e, no desenrolar das apresentações, ele contava vantagem do seu pequeno mundo azul, elogiando seu apartamento. O seu entusiasmo foi tão completo que, em pouco tempo, a sua vida estava pelo avesso, só de besteira.

Mas a carência falava mais alto. Ivete foi a primeira a receber o milagre do pedido, conheceu o apartamento azul. Quando voltou, montada na bicicleta, com a ilusão de estar em um carro de luxo, disparou contando vantagem por estar com a pele mais bonita. Uma das amigas perguntou, rindo: — O apartamento é pintado de azul?

— Que pergunta mais besta! Disse a lambuzada do azul.”

“As abundantes, fecundas e divinas mulheres de Flora Liz dizem, em linguagem leve e moleca, não aos convencionalismos e partem, felizes, em busca dos pequenos gozos que a vida pode proporcionar a quem toma as rédeas de seus próprios desejos”, diz Christina Ramalho, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Sergipe, que prefacia o livro.

Pela qualidade do que produz, é até surpreendente saber que Ailezz teve educação formal até os 16 anos, quando, criada em colégio interno, fugiu e casou com o primeiro namorado, José Doroteu Rocha, com quem dividiu uma vida feliz (e não é clichê) por 70 anos e com quem teve 15 filhos, sendo que 14 cresceram e se tornaram adultos reconhecidos pelo que fazem, como a artista plástica Lau Rocha, que ilustra, com competente beleza, os livros infantis da mãe.

Uma curiosidade sobre o nome artístico contada pelos filhos: o jovem Doroteu costumava oferecer músicas para sua amada no coreto da praça em Propriá, mas como o namoro era escondido ele, habilmente, trocava o nome dela para Ailez (Zélia ao contrário). Quando a escritora, aos 58 anos, começou a pintar, ela, honrando a história de amor, resolveu criar seu nome artístico adicionando um “z” no final, que segundo ela, era para marcar uma nova fase em sua vida. Assim nasceu Ailezz.

Assídua frequentadora das rodas literárias, autora de 15 livros e agora também de um podcast, Ailezz já prepara o lançamento de mais dois títulos, um romance, “Pérolas”, uma história épica, e um infantil, “O pastor de ovelhas”. Enquanto isso, desfruta a glória de ser uma escritora que já teve texto, “Tomates cereja”, encenado como drama em escolas, o assédio de leitores de todas as idades e a venda dos livros, nos lançamentos cada vez mais concorridos, nas livrarias ou diretamente.

“Meus livros caminham com pernas próprias”, orgulha-se Ailezz, merecedora do reconhecimento.

*É jornalista.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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