Marcos Cardoso*
Há muita genialidade e genealogia por trás do valioso Globo de Ouro conquistado por Fernanda Torres na madrugada de domingo para segunda-feira, prêmio da crítica concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. A homenagem que ela recebeu por sua interpretação confirma a importância de um dos melhores filmes já realizados no Brasil.
Marcelo Rubens Paiva
No filme “Ainda Estou Aqui”, Fernanda dá vida a Eunice Paiva, a viúva do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, que vê o marido ser levado à tortura e assassinato pela ditadura militar em 1971. O corpo jamais foi encontrado. O drama de Eunice, até recentemente uma desconhecida para a maioria dos brasileiros, é a linha dorsal do romance de mesmo nome escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal.
O livro é a volta de Marcelo a um drama autobiográfico, já que se tornou famoso como escritor com “Feliz Ano Velho”, lançado em 1982, que narra a experiência pessoal do acidente que o deixou tetraplégico depois de um mergulho em um lago.
O livro “Ainda Estou Aqui”, de 2015, apoiado na relação de Marcelo com a mãe, detalha a luta de sua família pela verdade e justiça, e como Eunice se reinventou tornando-se advogada e destacada defensora dos direitos indígenas, até ser vencida pelo Alzheimer.
Marcelo Rubens Paiva é autor de inúmeros livros, peças de teatro e roteiros de cinema. Ele colaborou com o roteiro do filme dirigido pelo amigo de adolescência Walter Salles.
Walter Moreira Salles
Essa relação pessoal com a história, já que Walter frequentava a casa no Leblon que é ela mesma também personagem do filme, envolve o cineasta com o drama vivido pela família Paiva e certamente o inspirou a dirigir um dos seus filmes mais premiados. Isso não é pouco para quem é o principal cineasta do Brasil em atividade, diretor do emblemático “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2004), que retrata a juventude de Che Guevara, dentre outros.
“Ainda Estou Aqui”, o filme, estreou no dia 7 de novembro e já foi assistido por mais de 3 milhões de brasileiros. Muitos jovens estão descobrindo agora que houve uma ditadura perversa por aqui.
Uma curiosidade sobre Walter Moreira Salles é que ele é um dos homens mais ricos do Brasil e o terceiro cineasta mais rico do mundo, atrás apenas de George Lucas e Steven Spielberg. Um dos herdeiros do Itaú Unibanco e de empresas que dominam o mercado de nióbio no mundo, ele tem uma fortuna pessoal estimada pela Forbes em US$ 4,2 bilhões (quase R$ 26 bilhões pela cotação atual).
Como pode um homem tão rico gostar de fazer um cinema humanista, de filmar temas de fortes conteúdos políticos e sociais comumente mais afeitos à formação de esquerda? Há comentários jocosos que o tratam como “banqueiro contra a ditadura militar”, mas, discreto, ele não fala sobre a vida pessoal. Prefere dizer que um país sem memória é um país sem presente e sem futuro.
No momento, está concluindo uma série sobre Sócrates, jogador de futebol, que considera um dos construtores da redemocratização do país.
Fernanda Montenegro
A relação de Walter Salles com Fernanda Torres também é antiga. Em 1995, ele e Daniela Thomas (uma das roteiristas de “Ainda Estou Aqui”) dirigiram “Terra Estrangeira”, que foi protagonizado por Fernanda Torres. Em 1998, estreou “O Primeiro Dia”, o segundo longa com direção de Walter e Daniela com participação de Fernanda.
Ainda em 1998, a relação de Salles com a família Torres se consolidou na realização de “Central do Brasil”, estrelado por Fernanda Montenegro. O drama de Dora e Josué ganhou o Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. E a performance de Fernandona mereceu a indicação como Melhor Atriz no Oscar e Melhor Atriz em Filme Dramático no Globo de Ouro.
O Globo de Ouro que Fernanda Montenegro não ganhou a filha conquistou 26 anos depois. Oscar de Melhor Atriz ainda é uma possibilidade para Fernanda Torres, agora tornada possível com o prêmio dessa semana. “O prêmio do Globo de Ouro reconhece, pontua e ilumina essa grande atriz brasileira que é Fernanda Torres. É um fato difícil de se alcançar. Eu sei na pele”, escreveu a mãe em carta aberta à filha. Ela também está no filme interpretando Eunice já sofrendo com a doença que a acometeu no fim da vida.
Filha da reverenciada atriz nacional e do ator e diretor Fernando Torres, irmã do diretor, roteirista e produtor de cinema Cláudio Torres, casada com o também diretor, produtor e roteirista de cinema Andrucha Waddington, a agora consagrada Fernanda Torres foi, em 1986, com apenas 20 anos, a primeira artista brasileira a ganhar a Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival de Cannes por sua atuação em “Eu Sei Que Vou Te Amar”, de Arnaldo Jabor.
Com essa bagagem toda parece fácil. Ainda mais podendo contracenar com colegas tão competentes, como Selton Melo, um Rubens Paiva materializado em vida. Mas tem que ter muito talento.
*É jornalista.
Foto: AFP