Marcos Cardoso*
“Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação, pela justiça social e pelo progresso do Brasil”. Que desavisado hoje poderia supor que tais palavras derrubaram um governo democraticamente eleito e deram a chave para a abertura de uma ditadura de 21 anos?
Há quase 60 anos, no dia 13 de março de 1964, o presidente João Goulart terminou assim o discurso proferido no histórico comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, para defender as reformas de base propostas por seu governo.
José Serra estava lá, tinha 21 anos, era presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e foi o segundo orador. Discurso frio, de principiante. Além, de Jango, os oradores mais aguardados da noite pela multidão de 200 mil pessoas que se espremia na Praça da República, centro carioca, eram mesmo o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e Seixas Dória.
Em conversa com o ex-governador sergipano, em agosto de 2005, ele transmitiu uma opinião e pediu que não fosse publicada, era informação em off: “Eu acho que fui o mais aplaudido”. Quem há de duvidar? O talento de Seixas Dória para discursar era reconhecido.
À época, um grupo de sindicalistas comunistas e trabalhistas tomou a frente da organização do evento, que estava sendo anunciado pelo governo desde janeiro de 1964 e foi transmitido ao vivo por rádio e TV para todo o país. Por volta das 14h daquele dia 13 de março, cerca de 5 mil pessoas já se concentravam para o comício do presidente João Goulart, nas imediações da Central do Brasil e do Ministério da Guerra.
Antes de seguir para o palanque, João Goulart assinou, no Palácio das Laranjeiras, o decreto da Superintendência de Reforma Agrária (Supra), que autorizava a desapropriação de áreas ao longo das ferrovias, das rodovias, das zonas de irrigação e dos açudes, e o decreto que encampava as refinarias particulares de petróleo.
O comício teve início às 18h. Jango subiu ao palanque às 19h45 e começou seu discurso exatamente às 20h46. Tendo ao seu lado direito a esposa Maria Thereza, Jango falou de improviso durante pouco mais de uma hora. Ele fazia algumas pausas no discurso para passar um lenço no rosto. Nesses momentos o ministro da Casa Civil, Darcy Ribeiro, aproveitava para sussurrar observações e orientações como, por exemplo, “fale mais devagar, presidente”.
Em seu discurso, Jango falou sobre a mensagem que seria encaminhada ao Congresso e explicou os decretos que havia assinado. Após tentar implementar sem sucesso as reformas por meio de um acordo entre o seu Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD), de Juscelino Kubitschek, de quem foi vice-presidente, Jango decidiu se aliar às esquerdas em uma estratégia de mobilização popular que teria início com o comício da Central no dia 13. Três dias antes do comício, o PSD havia rompido formalmente com o governo.
A nova estratégia consistia na mobilização popular por meio de uma série de comícios que seriam realizados em diferentes regiões do país e que culminariam em uma greve geral no dia 1º de maio, como forma de pressionar o Congresso pela aprovação do projeto de reformas anunciado durante o comício e encaminhado formalmente ao Legislativo dois dias depois.
Para isso, Jango contava com as forças que apoiavam as reformas: o CGT o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e a Frente de Mobilização Popular (FMP), formando a Frente Única de Mobilização.
Jango apostou tudo e perdeu. No dia 1° de abril, foi deposto. Sem condições de resistir ao golpe planejado pelos chefes militares, com o apoio de parcelas da sociedade e do governo americano de John Kennedy, o presidente partiu de Brasília para o Rio Grande do Sul e, logo em seguida, viajou para o Uruguai como exilado político. Em 6 de dezembro de 1976, Jango morreu na província de Corrientes, na Argentina, supostamente assassinado.
Arraes foi preso já no dia 1º e enviado imediatamente ao arquipélago de Fernando de Noronha. Seixas, na madrugada do dia 2 de abril, sendo encaminhado primeiro ao 29º Batalhão de Caçadores, em Salvador, onde passou sete dias. Da prisão na capital baiana, enviou carta ao presidente empossado, Humberto de Alencar Castello Branco, desafiando-o a apontar o crime pelo qual estava pagando. Não obteve resposta.
Ali mesmo, o Exército lhe ofereceu a possibilidade de retornar ao governo de Sergipe, desde que assinasse um manifesto de apoio ao novo regime, como fizeram alguns governadores para se garantirem nos cargos. Seixas negou-se a assinar: como olharia para a mulher, os filhos e os amigos depois? Foi embarcado também para Fernando de Noronha, onde penou por quatro meses na companhia do amigo Miguel Arraes.
(Este texto, aqui atualizado, integra o livro “Impressões da Ditadura”, de minha autoria e com apresentação do professor Josué Modesto dos Passos Subrinho, que será lançado em breve pela Editora UFS).
*É jornalista.