Marcos Cardoso*
O assassinato de Rubens Paiva foi um episódio emblemático da ditadura militar instituída há 60 anos com o golpe de 1° de abril – sim, no dia da mentira e não na véspera. A confirmação da morte e desaparecimento do corpo só aconteceu em 2014, culminando a luta da vida de Eunice Paiva, a viúva.
Por obra e graça da Comissão Nacional da Verdade chegou-se ao conhecimento do que sucedeu a partir da prisão do ex-deputado, no dia 20 de janeiro de 1971, quando nunca mais foi visto, vivo ou morto. A verdade só aflorou após 43 anos.
Flagrado por agentes da Aeronáutica ao receber correspondência de exilados políticos brasileiros no Chile, Rubens Paiva foi levado de sua casa no Leblon para a carceragem do CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica), que funcionava na 3ª Zona Aérea, no Aeroporto Santos Dumont. Ali mesmo começou a ser torturado, segundo relatos obtidos.
Armados de metralhadoras, os militares não apresentaram mandado de prisão, mas permitiram que ele trocasse de roupa e saísse guiando o próprio carro. A mulher, Eunice, e a filha mais velha, Eliana, de 15 anos, também foram sequestradas. A adolescente foi libertada no dia seguinte. Eunice ficou 15 dias presa, incomunicável e sem nenhum contato com o marido.
No dia seguinte, 21 de setembro de 1971, o ex-deputado foi transferido para o Departamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, na Rua Barão de Mesquita, Tijuca, Zona Norte, onde não resistiu a novas e mais violentas sevícias.
Aquele a quem cabia atestar se os presos ainda suportavam tortura, o tenente-médico psiquiatra Amilcar Lobo, disse em depoimento que o viu “moribundo, uma equimose só e roxo da raiz dos cabelos às pontas dos pés”.
O então capitão Rubens Paim Sampaio, do Centro de Informações do Exército (CIE), foi o chefe da equipe responsável pela recepção e interrogatório de Rubens Paiva no DOI, segundo o então coronel Ronald José Motta Baptista de Leão, ex-chefe do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) e responsável pela carceragem.
Leão afirmou à Comissão Nacional da Verdade que o viu pendurado num pau de arara e que chegou a dar um tapinha no traseiro do preso, despretensiosamente dizendo “que bunda gorda, deputado”.
O brigadeiro João Paulo Burnier, golpista de 1964 morto no ano 2000, comandava a Base Aérea do Galeão, mas não foi denunciado pela morte de Rubens Paiva. O general José Antônio Nogueira Belham, que comandava o DOI-I e admitiu ter inventado a suposta fuga de Rubens Paiva, e mais quatro oficiais foram denunciados pelo assassinato. Quase todos já morreram e ninguém jamais foi condenado.
Abrir a barriga
A versão da ditadura sobre a morte de Paiva que perdurou por mais de quatro décadas é que ele teria sido resgatado por seus companheiros quando mostrava à polícia um endereço onde poderia estar vivendo um “terrorista” que trazia correspondência de exilados chilenos. Os militares sempre sustentaram que, na madrugada de 22 de janeiro de 1971, um capitão (depois general reformado Raymundo Ronaldo Campos) e dois sargentos conduziam o ex-deputado em um Fusca para reconhecer a “casa suspeita”.
No Alto da Boa Vista, continua o teatrinho, o veículo do Exército foi fechado por outros dois carros e cerca de oito supostos guerrilheiros atacaram e incendiaram o Fusca. No entanto, o depoimento de Raymundo de Campos desmonta a história oficial. O general reformado assegurou diante dos integrantes da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro que a versão não passou de uma encenação.
E a última farsa desse teatro dantesco foi enfim descortinada quando o coronel reformado Paulo Malhães revelou a verdade sobre a ocultação dos restos mortais de Rubens Paiva, dois anos depois do assassinato no calabouço do DOI-I.
Intimado pela Polícia Federal, ele prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade sobre a ocultação de restos mortais de vítimas da ditadura. O oficial não confirmou ter dado solução final às ossadas do ex-deputado. Mas a fala anterior dele foi tão convincente que não tem como não acreditar que de fato foi o encarregado de solucionar a “cagada” feita pelos seus colegas, sendo obrigado a desenterrar os restos mortais e sumir com eles, jogando-os ao mar.
Malhães não negou que era um dos carrascos da Casa da Morte de Petrópolis, onde adversários do regime eram torturados, mortos e tinham os corpos mutilados e jogados num rio. As barrigas eram cortadas, os corpos eram colocados em sacos com pedras, para que não flutuassem.
Em depoimento à Comissão da Verdade do Rio, ele descreveu a “técnica” para ocultar cadáveres como “um estudo de anatomia”. Como jogar na água e não flutuar? Dedos das mãos e arcadas dentárias eram arrancados para evitar identificação.
“De qualquer maneira você tem que abrir a barriga, quer queira, quer não. É o primeiro princípio. Depois, o resto é mais fácil. Vai inteiro. Eu gosto de decapitar, mas é bandido aqui”, disse, referindo-se à Baixada Fluminense, onde mora.
O então coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que o depoimento confirma que o desaparecimento de presos foi uma política de Estado na ditadura militar. “Não tenho dúvida de que esses atos aconteciam com o conhecimento e o aval da cúpula do regime. Esses homens agiam com respaldo institucional”, afirmou.
Mas não é só isso. O depoimento do coronel é uma mostra do nível de perversidade a que chegaram militares e outros agentes da repressão não só ao torturar, mas ao desaparecer com os corpos. Para a ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, “o depoimento do coronel mostrou que a ditadura valeu-se de psicopatas”.
À Comissão da Verdade do Rio, e com um orgulho contido, Malhães detalhou como desaparecia com os corpos das vítimas da Casa da Morte, centro de tortura de onde saiu apenas uma sobrevivente, Inês Etienne Romeu, integrante da organização VAR-Palmares.
Ainda estou aqui
Rubens Beirodt Paiva tinha então 41 anos, era industrial, engenheiro civil formado em 1954 na Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, São Paulo, seu Estado natal (nasceu em Santos, no ano de 1929). Foi vice-presidente da União Estadual dos Estudantes. Foi engenheiro construtor de Brasília, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, cassado e exilado em 1964.
Na Câmara, destacou-se pela defesa de bandeiras nacionalistas. Quando sobreveio o golpe militar de 1964, ele era vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito que apurava o recebimento de dólares pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), fachada utilizada pela CIA para financiar a desestabilização do governo João Goulart.
Retornando do exílio, Rubens Paiva passou a atuar na resistência à ditadura, escondendo militantes perseguidos, ajudando-os a sair para o exterior e enviando denúncias de tortura para organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. Tinha cinco filhos, dentre eles o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor de livros, peças de teatro e roteiros de cinema, que se notabilizou pelos livros autobiográficos “Feliz ano velho” (1982) e “Ainda estou aqui” (2015), base do roteiro do filme que retrata a mudança drástica na vida de Eunice Paiva e seus cinco filhos após o desparecimento de Rubens Paiva.
(Texto publicado em 2014 e agora atualizado)
*É jornalista.