O rascunho do golpe

Marcos Cardoso*

Nunca antes na história desse país um ex-ministro da Justiça foi preso logo depois que se despediu do cargo. E nunca um ministro da Justiça havia participado da escrita de um documento para decretar um golpe de Estado. O mais próximo que se tem de registro na história foi Luís Antônio da Gama e Silva, então ministro da Justiça do governo do ditador Costa e Silva, que em dezembro de 1968 elaborou e foi um dos signatários do Ato Institucional nº 5, o golpe dentro do golpe.

Tem-se notícia de algo semelhante ocorrido em 1937, quando o ministro da Justiça Francisco Campos, o Chico Ciência, elaborou a nova Constituição que deu ares de legalidade ao Estado Novo, a ditadura iniciada em novembro daquele ano por Getúlio Vargas. Ele também participou da elaboração do AI-1, o ato inaugural da ditadura iniciada em 1964.

Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça que teve a prisão decretada no última terça-feira, dia 10, e que foi detido ao desembarcar no aeroporto de Brasília no sábado, 14, era o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal até o domingo, dia 8, quando ocorreu a malfadada tentativa de golpe de estado e depredação das sedes dos três poderes da República. Com a leniência do Exército.

O presidente Lula o afastou imediatamente do cargo, com a aprovação do Congresso, nomeando um interventor para a Segurança Pública, e naquele mesmo dia a Advocacia Geral da União pediu sua prisão ao STF, logo determinada pelo ministro Alexandre de Moraes e confirmada pelo colegiado da casa. Também foi preso o comandante da PM e afastado do cargo por 90 dias o governador Ibaneis Rocha (MDB).

Torres foi preso por sabotar o esquema de segurança em Brasília no domingo da infâmia, dos ataques terroristas ao Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional. “Montou a sabotagem e fugiu do Brasil”, disse o interventor federal Ricardo Cappelli. Estava em Orlando, Flórida, Estados Unidos, onde não por coincidência encontra-se o ex-presidente Jair Bolsonaro desde que abandonou o Brasil na véspera de encerrar o mandato.

Alexandre de Moraes determinou a prisão e busca e apreensão na casa do ex-ministro e ex-secretário. Qual não foi a surpresa dos agentes da Polícia Federal ao encontrarem a minuta de um decreto para instaurar um “estado de defesa” na sede do TSE e mudar o resultado das eleições de 2022.

O documento (chamemos de rascunho, mas tecnicamente é uma minuta) é um monstrengo jurídico que configuraria um golpe com o objetivo de anular a vitória legítima de Lula na última eleição. O decreto visaria “restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito no Tribunal Superior Eleitoral, para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e ilegais levadas a efeito pela Presidência e membros do Tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral presidencial de 2022.”

O tal estado de defesa nomearia uma Comissão de Regularidade Eleitoral, formada por 17 membros, sendo que oito militares indicados pelo Ministério da Defesa, presidida por um desses militares, que afastaria todos os ministros do TSE, suspendendo seus sigilos de correspondência e de comunicação telemática e telefônica.

Pior: o regramento inconstitucional previa a prisão por “crime contra o Estado”, decretada ao bel prazer do militar presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral. Contra quem e por que motivo exatamente não está claro, mas se supõe que os ministros do TSE seriam os primeiros na mira dos golpistas.

Há notícias não confirmadas de que um bando de bolsonaristas também voou para a Flórida, dentre eles o governador Ibaneis Rocha, o ex-ministro e agora senador eleito Sérgio Moro e seu fiel escudeiro Deltan Dallagnol, o ex-vice-presidente e agora senador eleito Hamilton Mourão, o ex-ministro e senador Ciro Nogueira, o pastor Silas Malafaia e o vereador Carlos Bolsonaro.

O que estariam tramando? Uma tentativa de reação ou preparação da defesa de Bolsonaro, com a situação cada vez mais complicada perante a Justiça? Situação jurídica agravada pelo compartilhamento de um vídeo, na terça-feira, afirmando que Lula foi eleito pelo STF e TSE, e agora pela materialidade de um golpe de Estado que esteve na iminência de acontecer. Todas as pedras foram cantadas por ele e por seus aliados golpistas.

Mas, por circunstâncias desconhecidas e pressões, inclusive internacionais, o Exército acabou não aderindo ao golpe tal qual foi rascunhado.

Para começo de conversa, a Procuradoria-Geral da República pediu e o STF determinou a inclusão de representação contra o ex-presidente no Inquérito 4.921, que apura a incitação pública à prática de crime e autoria intelectual dos atos antidemocráticos que resultaram nos episódios de terrorismo.

Na esfera eleitoral, poderá ser acelerado o andamento das ações que pedem a inelegibilidade de Jair Bolsonaro no TSE. O julgamento deve acontecer até março. Avalia-se que, inevitavelmente, o ex-chefe do Executivo será condenado.

Para apertar o torniquete mais um pouquinho, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União pediu o bloqueio de bens de Ibaneis Rocha, de Anderson Torres e do próprio Bolsonaro. Se o ministro Vital do Rêgo, sorteado relator do caso, despachar por indisponibilizar os bens de Bolsonaro e os outros citados, os bancos terão de bloquear as contas e eles não poderão vender seus imóveis.

Será que vem prisão por aí?

*É jornalista

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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