Marcos Cardoso*
Há 10 anos, uma decisão do Conselho Nacional de Justiça estabeleceu que nenhum cartório poderia recusar a celebração do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isso foi possível porque, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal igualou uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas. O relator da ação (na verdade a ADI nº 4277 e da ADPF nº 132) foi o então ministro Carlos Ayres Britto, que pronunciou um voto histórico. Em 8 maio de 2011, registrei aquele momento decisivo na vida de brasileiros com o texto que reproduzo aqui:
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O voto libertador de Carlos Britto
Por 10 votos a zero, e a abstenção de um ministro, o Supremo Tribunal Federal, seguindo o voto do relator Carlos Ayres Britto, reconheceu na quinta-feira a relação entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar” e concedeu aos pares estáveis homoafetivos os mesmos direitos e deveres da união entre casais heterossexuais.
O voto de Carlos Britto, proferido um dia antes, foi dividido em quatro partes. Na primeira ele expõe que ninguém pode ser discriminado em função da opção sexual. Na segunda parte o ministro sergipano explica que, legalmente, duas pessoas do mesmo sexo podem constituir uma família. Na terceira e na quarta parte do voto ele deixa em aberto a possibilidade de casamento e adoção de filhos por duas pessoas unidas homoafetivamente.
O sexo
Carlos Britto inicia seu voto, didaticamente – e poeticamente -, explicando que há na praça um novo substantivo: homoafetividade. “Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais. Logo, vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito empresarial, econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial, pois não se trata de u’a mera sociedade de fato ou interesseira parceria mercantil. Trata-se, isto sim, de um voluntário navegar por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a experimentação de um novo a dois que se alonga tanto que se faz universal”.
O sexo das pessoas, prossegue Carlos Britto, “salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’”.
O homossexual não podia constituir família por preconceito, substantivo que embute o significado de conceito prévio. “Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo, juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade, a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada”, diz o ministro.
De acordo com a Constituição, prossegue Carlos Britto, o sexo, assim como a origem social e geográfica das pessoas, a idade, a raça, a cor da pele, é um dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas, “pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas”.
Quanto ao uso do sexo nas três funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio, observa Carlos Britto. “Que já é um modo de atuar mediante o saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. (…) É falar: a Constituição Federal não dispõe, por modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado. Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas. Embutida nesse modo instintivo de ser a ‘preferência’ ou ‘orientação’ de cada qual das pessoas naturais”.
O ministro lembra que proibir a discriminação em razão do sexo, como faz a Constituição, é proteger o homem e a mulher como um todo psicossomático e espiritual que abarca a dimensão sexual de cada qual deles. “Por conseguinte, cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico. Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem és”, tão bem teoricamente explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo (cito de memória). Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano”.
No seu voto histórico, Carlos Britto infere que, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. “Ou ‘homoafetivamente’, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade”. Ele conclui a parte do voto sobre a questão do sexo, um verdadeiro arrazoado esclarecedor do tema, afirmando que nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria sexualidade. “Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a essa prática, um lógico encaixe do livre uso da sexualidade humana nos escaninhos jurídicofundamentais da intimidade e da privacidade das pessoas naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte inicial do art. 10 da Constituição, verbis: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas’”.
A família
O constitucionalista Carlos Britto observa que a Constituição estabelece especial proteção estatal à instituição da família: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (caput do artigo 226). “Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico)”.
Segundo observa, mais que um singelo instituto de Direito em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo. “Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura das mais permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico, por evidente, mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima, natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. Tão insimilar a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante outra, na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se veem tomadas da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão emparceiradamente experimentada quanto distendida no tempo e à vista de todos. Tudo isso permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os filhos (consanguíneos ou não), avós, netos, sobrinhos e irmãos. Até porque esse núcleo familiar é o principal lócus de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do indivíduo’, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional”.
Britto lembra que a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. “Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser”.
E conclui sua formulação acerca da possibilidade da família formada da união homoafetiva observando que “a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”. Som pena, diz ele, “de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. Uma canhestra liberdade ‘mais ou menos’, para lembrar um poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier”.
O casamento
O casamento perante o Juiz, ou religiosamente celebrado com efeito civil, existente como forma de proteção da mulher, comparece como uma das modalidades de constituição da família. “Não a única forma, esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Essas duas objetivas figuras de direito que são o casamento civil e a união estável é que se distinguem mutuamente, mas o resultado a que chegam é idêntico: uma nova família, ou, se se prefere, Uma nova ‘entidade familiar’, seja a constituída por pares homoafetivos, seja a formada por casais heteroafetivos”.
“Não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham”, reforça o ministro Carlos Britto.
A adoção
Por fim, Carlos Britto afirma a possibilidade de adoção por pares homoafetivos: “A Constituição Federal remete à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§5º do art. 227); E também nessa parte do seu estoque normativo não abre distinção entre adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito”.
Este é mais um voto histórico de Carlos Ayres Britto. De um valor humano e libertador incontestáveis. Não é preciso dizer muito mais.
*É jornalista.