Por Marcos Cardoso*
“Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz.” Anas Al-Sharif, correspondente palestino da Al Jazeera, deixou uma mensagem antes de ser assassinado pelas forças israelenses na noite do último domingo, 10.

Ele foi morto com mais cinco colegas num ataque aéreo israelense contra a tenda para a imprensa no Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza. Israel o acusou, sem provas, de ser um terrorista do Hamas.
O “assassinato seletivo” foi “mais um ataque flagrante e premeditado à liberdade de imprensa”, afirmou a emissora Al Jazeera em comunicado. O Brasil, a União Europeia e outros países condenaram o massacre.
Contando esses assassinatos, 192 profissionais da imprensa já morreram em Gaza desde outubro de 2023, segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas. O número é maior do que a soma dos jornalistas mortos nas duas Grandes Guerras Mundiais, Vietnã e Ucrânia.
Al-Sharif, um renomado repórter de 28 anos, sabia que sua vida estava em risco, mas manteve-se firme no propósito de dar voz ao sofrimento do seu povo. O texto revela a paixão do jornalista com a sua causa. Ele deixa mulher e dois filhos pequenos.
O testamento foi escrito em abril deste ano e publicado nas redes sociais de sua equipe.
Segue a íntegra do texto:
“Esta é a minha vontade e a minha mensagem final. Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz.
Primeiramente, que a paz esteja com vocês e a misericórdia e as bênçãos de Alá. Alá sabe que me esforcei ao máximo e dediquei toda a minha força para ser um apoio e uma voz para o meu povo, desde que abri meus olhos para a vida nos becos e ruas do campo de refugiados de Jabalia. Minha esperança era que Alá prolongasse minha vida para que eu pudesse retornar com minha família e entes queridos à nossa cidade original, Asqalan (Al-Majdal), ocupada. Mas a vontade de Alá veio primeiro, e Seu decreto é final.
Vivi a dor em todos os seus detalhes, experimentei o sofrimento e a perda muitas vezes, mas nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou falsificação – para que Alá possa testemunhar contra aqueles que permaneceram em silêncio, aqueles que aceitaram nossa matança, aqueles que sufocaram nossa respiração e cujos corações não se comovem com os restos mortais dispersos de nossas crianças e mulheres, sem fazer nada para impedir o massacre que nosso povo enfrenta há mais de um ano e meio.
Confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano, o coração de cada pessoa livre neste mundo.
Confio a vocês seu povo, suas crianças injustiçadas e inocentes que nunca tiveram tempo para sonhar ou viver em segurança e paz. Seus corpos puros foram esmagados por milhares de toneladas de bombas e mísseis israelenses, dilacerados e espalhados pelos muros.
Peço a vocês que não deixem que as correntes os silenciem, nem que as fronteiras os impeçam. Sejam pontes para a libertação da terra e de seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre nossa pátria roubada.
Confio a vocês o cuidado da minha família. Confio a vocês minha amada filha Sham, a luz dos meus olhos, a quem nunca tive a chance de ver crescer como sonhei. Confio a vocês meu querido filho Salah, a quem eu desejava apoiar e acompanhar pela vida até que ele se tornasse forte o suficiente para carregar meu fardo e continuar a missão.
Confio-lhes minha amada mãe, cujas orações abençoadas me trouxeram até onde estou, cujas súplicas foram minha fortaleza e cuja luz guiou meu caminho. Rogo a Alá que lhe conceda força e a recompense em meu nome com a melhor das recompensas.
Também confio a vocês minha companheira de longa data, minha amada esposa, Umm Salah (Bayan), de quem a guerra me separou por muitos dias e meses. Mesmo assim, ela permaneceu fiel ao nosso vínculo, firme como o tronco de uma oliveira que não se curva — paciente, confiando em Alá e assumindo a responsabilidade na minha ausência com toda a sua força e fé.
Peço-lhes que estejam ao lado deles, que sejam seu apoio diante de Alá Todo-Poderoso.
Se eu morrer, morrerei firme em meus princípios. Testifico diante de Alá que estou satisfeito com Seu decreto, certo de encontrá-Lo e seguro de que o que está com Alá é melhor e eterno.
Ó Alá, aceite-me entre os mártires, perdoe meus pecados passados e futuros e faça do meu sangue uma luz que ilumine o caminho de liberdade para o meu povo e minha família. Perdoem-me se falhei e orem por mim com misericórdia, pois cumpri minha promessa e nunca a mudei ou a traí.
Não se esqueçam de Gaza… E não se esqueçam de mim em suas sinceras orações por perdão e aceitação.”
Anas Jamal Al-Sharif
06/04/2025
Link da mensagem original:
*Marcos Cardoso é jornalista. Autor de “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” (Editora UFS, 2008), do romance “O Anofelino Solerte” (Edise, 2018) e de “Impressões da Ditadura” (Editora UFS, 2024). marcoscardosojornalista@gmail.com