Testamento de um jornalista assassinado

Por Marcos Cardoso*

“Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz.” O correspondente palestino da Al Jazeera, Anas Al-Sharif, deixou uma mensagem antes de ser assassinado pelas forças israelenses na noite do último domingo, 10.

Anas Al-Sharif, correspondente da Al Jazeera

Ele foi morto com mais quatro colegas num ataque aéreo israelense contra a tenda para a imprensa no Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza. Israel o acusou, sem provas, de ser um terrorista do Hamas.

O “assassinato seletivo” foi “mais um ataque flagrante e premeditado à liberdade de imprensa”, afirmou a emissora Al Jazeera em comunicado. O Brasil, a União Europeia e outros países condenaram o massacre.

Contando esses assassinatos, 192 profissionais da imprensa já morreram em Gaza desde outubro de 2023, segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas. O número é maior do que a soma dos jornalistas mortos nas duas Grandes Guerras Mundiais, Vietnã e Ucrânia.

Al-Sharif, um renomado repórter, sabia que sua vida estava em risco, mas manteve-se firme no propósito de dar voz ao sofrimento do seu povo. O texto revela a paixão do jornalista com a sua causa. Ele deixa mulher e dois filhos pequenos.

O testamento foi escrito em abril deste ano e publicado nas redes sociais de sua equipe.

Segue a íntegra do texto:

“Esta é a minha vontade e a minha mensagem final. Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz.

Primeiramente, que a paz esteja com vocês e a misericórdia e as bênçãos de Alá. Alá sabe que me esforcei ao máximo e dediquei toda a minha força para ser um apoio e uma voz para o meu povo, desde que abri meus olhos para a vida nos becos e ruas do campo de refugiados de Jabalia. Minha esperança era que Alá prolongasse minha vida para que eu pudesse retornar com minha família e entes queridos à nossa cidade original, Asqalan (Al-Majdal), ocupada. Mas a vontade de Alá veio primeiro, e Seu decreto é final.

Vivi a dor em todos os seus detalhes, experimentei o sofrimento e a perda muitas vezes, mas nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou falsificação – para que Alá possa testemunhar contra aqueles que permaneceram em silêncio, aqueles que aceitaram nossa matança, aqueles que sufocaram nossa respiração e cujos corações não se comovem com os restos mortais dispersos de nossas crianças e mulheres, sem fazer nada para impedir o massacre que nosso povo enfrenta há mais de um ano e meio.

Confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano, o coração de cada pessoa livre neste mundo.

Confio a vocês seu povo, suas crianças injustiçadas e inocentes que nunca tiveram tempo para sonhar ou viver em segurança e paz. Seus corpos puros foram esmagados por milhares de toneladas de bombas e mísseis israelenses, dilacerados e espalhados pelos muros.

Peço a vocês que não deixem que as correntes os silenciem, nem que as fronteiras os impeçam. Sejam pontes para a libertação da terra e de seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre nossa pátria roubada.

Confio a vocês o cuidado da minha família. Confio a vocês minha amada filha Sham, a luz dos meus olhos, a quem nunca tive a chance de ver crescer como sonhei. Confio a vocês meu querido filho Salah, a quem eu desejava apoiar e acompanhar pela vida até que ele se tornasse forte o suficiente para carregar meu fardo e continuar a missão.

Confio-lhes minha amada mãe, cujas orações abençoadas me trouxeram até onde estou, cujas súplicas foram minha fortaleza e cuja luz guiou meu caminho. Rogo a Alá que lhe conceda força e a recompense em meu nome com a melhor das recompensas.

Também confio a vocês minha companheira de longa data, minha amada esposa, Umm Salah (Bayan), de quem a guerra me separou por muitos dias e meses. Mesmo assim, ela permaneceu fiel ao nosso vínculo, firme como o tronco de uma oliveira que não se curva — paciente, confiando em Alá e assumindo a responsabilidade na minha ausência com toda a sua força e fé.

Peço-lhes que estejam ao lado deles, que sejam seu apoio diante de Alá Todo-Poderoso.

Se eu morrer, morrerei firme em meus princípios. Testifico diante de Alá que estou satisfeito com Seu decreto, certo de encontrá-Lo e seguro de que o que está com Alá é melhor e eterno.

Ó Alá, aceite-me entre os mártires, perdoe meus pecados passados e futuros e faça do meu sangue uma luz que ilumine o caminho de liberdade para o meu povo e minha família. Perdoem-me se falhei e orem por mim com misericórdia, pois cumpri minha promessa e nunca a mudei ou a traí.

Não se esqueçam de Gaza… E não se esqueçam de mim em suas sinceras orações por perdão e aceitação.”

Anas Jamal Al-Sharif
06/04/2025

Link da mensagem original:

https://x.com/AnasAlSharif0/status/1954670507128914219?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1954670507128914219%7Ctwgr%5Ef9f06685d47e466f181e95152994b06f9bc30e88%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.diariodocentrodomundo.com.br%2Fo-testamento-de-anas-al-sharif-jornalista-da-al-jazeera-assassinado-por-israel-em-gaza%2F

*Marcos Cardoso é jornalista. Autor de “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos”  (Editora UFS, 2008), do romance “O Anofelino Solerte” (Edise, 2018) e de “Impressões da Ditadura” (Editora UFS, 2024). marcoscardosojornalista@gmail.com

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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