Mata-se Travesti

Vive-se uma fantasia louca entre o desejo e o desprezo. Brasileiro é uma coisa engraçada: aqui, como forma de se ficar embaixo de um manto de moral somos capazes das piores atrocidades contra o outro. Num país administrado, quase sempre, por falsos moralistas, estamos vivendo um decréscimo na escala do respeito ao próximo. Não seria controverso que o País que mais consome vídeos pornôs envolvendo travestis e transexuais seja o mesmo que mais mata travestis e transexuais?

Entre outros casos, quando um pai instiga o seu filho dizendo que ele deve procurar gozar pela primeira vez dentro de um prostíbulo é que se confunde mais as coisas. Não se engane achando que isso não acontece mais. Acontece diariamente, com dezenas de meninos abaixo dos 18 anos, que precisam provar para seus pais, tios e irmãos que sim são homens que expelem esperma. A obrigação em ser homem, provar que é macho, tão enraizada no Brasil, não contribui para a formação de um indivíduo conhecedor de seu próprio corpo e mente. Não se engane, nada que é obrigado resulta em algo bom, quase sempre as punições são impregnadas na alma.

Assim, milhares de garotos são obrigados a se relacionarem com uma mulher, tendo anulado seus próprios desejos. Então, adulto, acabam sendo tomados pela necessidade física de explorar suas próprias vontades. Mas como fazer isso tendo suas asas podadas durante tantas décadas? Ele nunca vai assumir que, sozinho, consome pornô transexual. Ainda não teve coragem de parar seu carro numa esquina ou entrar num aplicativo de caça para procurar uma mulher trans, um dia fará isso, mas por enquanto, o desejo está apenas embutido em sua cabeça e dentro do histórico do computador. Sem saber, ele vem criando um monstro que o consumirá em médio tempo. Toda vontade não expelida vira dor. É sabido que qualquer desejo quando não realizado torna-se uma frustação, daí nascem os psicopatas, os sociopatas e, os mais comuns: os preconceituosos.

Num Brasil, onde ser preconceituoso é algo engraçado, tem-se espaço em horário nobre na televisão para falar mal e humilhar “o diferente”, e ainda por cima é legitimado por políticos (de caráter duvidoso), fica fácil entender que a formação de adultos mentalmente desequilibrados será a consequência direta de tanto desprezo pelo ser humano em si. Não adianta o Papa aceitar o público GLBT ou afirmar que o compromisso matrimonial entre pessoas do mesmo sexo precisa ser entendido como uma forma de garantias de direitos civis. É preciso que se criem homens e mulheres de forma holística, mostrando que cada indivíduo é único e que precisa ser enxergado assim para compor uma sociedade democraticamente coerente com a evolução.

Quando restringe o pensamento de alguém, seja menino ou menina, torna essa criatura um espectro daquilo que ela poderia vir a ser. Nunca saberemos o potencial final de uma pessoa que passou por algum tipo de privação no tocante ao respeito ao outro. Conversando com uma amiga, que recentemente casou na Polônia, ela me disse super feliz, que lá as crianças estavam sendo criadas sem levar em conta a identidade de gênero. Não existem coisas de meninos e meninas, mas sim, ações e pensamentos que tratem o todo como algo de todos, dessa forma, a criança crescerá se aceitando enquanto indivíduo e senhor (a) de si, mas sem apontar o outro por aquilo que ele venha a ser no futuro. Uma dádiva isso, pensei na hora!

Por aqui, ainda temos pais e mães da nova geração brincando de educar crianças. Fico feliz quando vejo que alguns amigos (hoje pais) estão educando seus filhos da melhor forma possível para entender que o mundo vem dando voltas rápidas no tocante à sexualidade do outro. E fico mais feliz ainda quando pais e mães, jovens, entendem quando seus filhos que se assumiram GLBT. O apoio familiar é a porta de entrada para pessoas mentalmente mais saudáveis, educadas e produtivas.

Voltando ao tema em si. Há dez anos, mais ou menos, conheci um jovem rapaz gay de 22 anos, que naquela época estava iniciando sua transição para assumir sua transexualidade. Nada fácil, óbvio. Além de brigar em casa com o pai, por conta de ser gay (ainda não era transexual), ele estava tomando hormônios e aos poucos modificando seu visual externo, pois o interno era notavelmente feminino. Enquanto garoto sempre foi alegre, irradiava energia do bem, brincalhão, mas lá no fundo carregava o medo de assumir para todos que na verdade queria ser reconhecida como ela. Era muita blusa folgada para esconder os seios que cresciam aos poucos, e muito boné para deixar o cabelo crescer sem ser incomodada. Em casa travava uma luta com o pai, mas tinha o apoio da madrasta, que aceitava sua transformação tentando colocar panos quentes nos conflitos.

Peitando o mundo, em pouco mais de cinco anos já tinha mudado o corpo, feito a tão árdua transição (que por sinal deve durar muitos e muitos anos), ela conseguiu renascer enquanto aquilo que tinha dentro de sua cabeça: uma linda mulher. Literalmente. Toda a delicadeza que tinha enquanto ainda era um menino gay deu lugar a uma forte mulher trans, dona de suas dores e amores. Saiu de casa e como tanta outra foi parar na prostituição. Eu muitas vezes passava, por onde ela trabalhava, discretamente fazia questão dela não me enxergar para evitar constrangimentos (de ambas as partes), mas quando a gente se encontrava na noite, nas festas e na sociedade, era a mesma a alegria de sempre. Existe em nossa amizade, esporádica, o respeito máximo de ambas as partes. Nunca paramos para falar sobre a transição de forma mais íntima, mas sobram abraços e desejos de tudo do bom para ela, mas, quando vejo a mulher que ela se tornou, fico apreensivo também com a possibilidade de vê-la vítima de alguma agressão. Sobrevivendo como pode, ela vem trilhando um caminho crescente, avalio eu.

A primeira coisa que ela fez após colocar grandes silicones, foi cair fora do Brasil. Sei que em parte para sobreviver financeiramente, mas também para evitar ser morta e fazer parte das estáticas cruéis em que centenas de outras mulheres trans já o fazem. Acompanho a vida dela pelas redes sociais, e me divirto vendo que ela está longe e viva.

Em centenas de sites e matérias jornalísticas foi divulgado que o Brasil é o lugar que mais mata transexuais e travestis no mundo. Um absurdo isso! Segundo dados, entre janeiro de 2008 e março de 2014 foram 604 mortes de transexuais e travestis. Claro que estes números devem ser muito maiores, pois sabemos que a contabilização desses casos depende da sensibilidade escassa dos nosso machistas policiais. Os dados citado foram divulgados pela ONG Transgender Europe (uma organização europeia que apoia os direitos da população transgênero).

Mesmo com todas as dificuldades, o Grupo Gay da Bahia, que há 30 anos trabalha nesta triste contabilização também, divulgou que em 2015 pelo menos 318 pessoas foram mortas vítimas de homofobia. Imagine se este quantitativo fosse seguido à risca, com todos os casos sendo registrados e divulgados?

Estima-se que a cada 28h morre alguém vítima de homofobia no Brasil. Os números são difíceis de serem engolidos e olhe que estamos falando de violência física. Se formos os levar em consideração a violência verbal, aquela que agride o psicológico da vítima, os índices tornam-se incalculáveis. Enquanto você está aí preocupado com as mortes causadas pelas guerras lá fora, o Brasil vive uma batalha silenciosa, onde lágrimas molham túmulos de indigentes sociais. Faça parte do time do amor e do respeito ao próximo. Denuncie!

Para comunicar casos de homofobia: Dique 100.

Para falar comigo sobre este e outros temas:
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Instagram: jaimenetoo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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