A intentona golpista e a intervenção federal no Distrito Federal

Para o retorno do recesso, havíamos programado abordar temas diversos, a exemplo da aprovação, no final do ano passado, de mais três emendas à constituição (emendas 126, 127 e 128), no ano que já era recordista de promulgação de emendas constitucionais e que fechou com a surpreendente marca de 14, o que já fora objeto de comentários e análises.

Mas os fatos se impõem à programação de pauta e não podemos deixar de examinar, prioritariamente, os diversos desdobramentos da intentona golpista de 08 de janeiro de 2023, que chocou o Brasil e o mundo.

Golpismo, terrorismo, manifestações violentas com depredação do patrimônio público e atentados graves às instituições democráticas, intervenção federal, enfim, esses e outros assuntos correlacionados ao episódio serão aqui analisados ao longo das próximas semanas e hoje, começando pelo tema da intervenção federal, decretada pelo Presidente da República na mesma tarde de 08 de janeiro recaindo sobre o setor da segurança pública do Distrito Federal, para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.

Em textos anteriores, já analisamos aqui em diversas ocasiões, na perspectiva jurídico-constitucional, o tema da intervenção federal (a propósito das decretadas e executadas intervenções federais nos Estados do Rio de Janeiro e Roraima em 2018 e das especuladas e não concretizadas intervenções federais nos Estados do Espírito Santo, Maranhão e Bahia, além de em outras situações propícias).

De qualquer modo, é oportuno contextualizar novamente o tema da intervenção no espectro da organização político-constitucional do Estado Brasileiro, para então analisar a decretada e executada intervenção federal no Distrito Federal.

O Brasil é uma República Federativa, formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e Distrito Federal (Art. 1º da Constituição Federal), todos autônomos nos termos estabelecidos pela Constituição (Art. 18).

É dizer: cada ente federativo é autônomo porque possui uma esfera da atuação livre da interferência de outrem, tudo dentro dos limites traçados pelo pacto federativo, expresso na Constituição da República Federativa do Brasil.

Portanto, a autonomia dos entes federativos é elemento essencial da forma federativa em que se organiza a República Brasileira, e se desdobra em autonomia política, autonomia administrativa e autonomia financeira.

Se é assim, a intervenção – na medida em que representa afastamento temporário da autonomia do ente federativo – somente deve ocorrer em situações excepcionalíssimas, expressamente previstas e autorizadas no texto constitucional.

Com efeito, é na perspectiva da excepcionalidade que as normas constitucionais dos Arts. 34 e 35 cuidam da intervenção (“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)”; “Art. 35. O Estado não intervirá  em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:”).

Noutras palavras: o princípio consagrado pela Constituição Federal é o da não-intervenção, pois é a não-intervenção que combina com a autonomia.

Pois bem: dentre as situações excepcionalíssimas em que a Constituição Federal autoriza a intervenção federal está a de “grave comprometimento da ordem pública” (“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…) III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”).

Observe-se o quanto a Constituição foi cuidadosa e prudente ao prever a hipótese. Não é qualquer grau de comprometimento da ordem pública que autoriza a intervenção; apenas o grave comprometimento da ordem pública (do contrário, estaria aberta a porta para interpretações lenientes que admitiriam intervenções federais diárias em estados nos quais estivesse a ocorrer situação de comprometimentos da ordem pública próprias do cotidiano das sociedades complexas contemporâneas).

Qual é o quadro de grave comprometimento da ordem pública no Distrito Federal que tenha se apresentado no dia 08 de janeiro, a ponto de justificar o uso desse instrumento jurídico de aplicação excepcionalíssima?

Parece muito claro e as imagens que acompanhamos ao vivo no mesmo dia falam por si: centenas de vândalos invadiram os prédios sede dos Poderes da República, com depredação de portas, janelas, vidros e destruição de bens em seus interiores, inclusive obras de arte de valores inestimáveis, muitas das quais foram objeto de doação por governos estrangeiros, com pregação e intento golpista e com fortíssimos indícios de complacência e omissão criminosas de autoridades da segurança pública do Distrito Federal (e também do Exército, da Guarda Presidencial e do Gabinete de Segurança Institucional), que inclusive estão sendo objeto da devida investigação criminal.

Aliás, esse é o fundamento e ao mesmo tempo o objetivo da intervenção, como o próprio decreto apontou no § 2º do Art. 1º: “O objetivo da intervenção é pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública no Distrito Federal, marcado por atos de violência e invasão de prédios públicos.” (Decreto Presidencial nº 13.377/2023).

Logo, uma primeira conclusão a que se chega é a da inquestionável legitimidade jurídica do ato praticado, tendo em vista motivo fático existente, tratando-se então de uma intervenção com causa real e concreta que a justifica nos estritos termos autorizados constitucionalmente.

Nessa hipótese (inciso III do Art. 34 da CF supratranscrito), a intervenção federal é  formalizada por decreto do Presidente da República  como ato de ofício, ou seja, independentemente de provocação, devendo ser ouvidos o Conselho da República e o Conselho da Defesa Nacional e devendo ser apreciado pelo Congresso Nacional, procedimentos que foram rapidamente adotados com afinal aprovação quase unânime, o que bem aponta o consenso político-institucional quanto à necessidade e mesmo imperiosidade da sua prática.

Prosseguindo na análise, a Constituição Federal exige que decreto de intervenção especifique a amplitude, o prazo e as condições de execução da intervenção, bem como nomeação do interventor, se for o caso (Art. 36, § 1º).

O Decreto Presidencial nº 13.377/2023 delimita a amplitude (área da segurança pública), estabelece o prazo (até 31/01/2023) e nomeia interventor (Ricardo Garcia Cappelli), embora disponha muito genericamente sobre as condições de execução da intervenção.

Percebe-se também aqui a validade jurídico-constitucional do ato.

Uma controvérsia que se apresentou, ainda em meio às perplexas reações da sociedade no próprio dia 08/01, foi se a intervenção federal no DF não deveria ser mais abrangente, que não se limitasse ao setor de segurança pública e que implicasse no afastamento do Governador Ibaneis Rocha do cargo, tendo em vista os fortes indícios de sua participação, no mínimo por gravíssima omissão, nos episódios que culminaram na invasão e depredação do patrimônio público dos Poderes sem qualquer reação inicial preventiva e repressiva da polícia militar, atribuição e dever constitucional sua, sob comando e direção superior do Governador.

Parece ter sido acertada a decisão de delimitar a abrangência da intervenção à área de segurança pública.

Com efeito, qualquer intervenção, que traduz afastamento temporário da autonomia do ente federativo, precisa, dentro da excepcionalidade constitucional a que se destina, guardar proporcionalidade com a sua causa e com a sua finalidade.

Se o problema é “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública” no DF (como o decreto bem aponta), parece desproporcional que a abrangência da intervenção (que deve ser especificada no decreto) fosse além da segurança pública do DF; seria uma medida desnecessária, pois implicaria em tolher a autonomia do Distrito Federal em setores que não guardam qualquer relação ou pertinência com a segurança pública e com as medidas necessárias para pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública.

Ressalte-se ainda que, do modo como delimitada a intervenção, o Governador não terá qualquer ingerência no setor da segurança pública do DF (que será toda gerida pela União, por meio do interventor designado) e não terá como comprometer o êxito das medidas necessárias para o restabelecimento da normalidade institucional.

De qualquer modo, o Governador foi afastado temporariamente do cargo, não como medida relacionada à intervenção, mas por decisão cautelar do Ministro do STF Alexandre de Moraes, no contexto do inquérito formalizado para as cabíveis e devidas investigações criminais de todo o episódio, em desdobramentos que também serão objeto de comentários e análises ao longo das próximas semanas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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