Uma das três emendas constitucionais promulgadas em dezembro/2022 foi a que estabelece ser dever da União prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades filantrópicas, para o cumprimento dos pisos salariais profissionais da enfermagem (enfermeiro, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira), bem como estabelece o superávit financeiro dos fundos públicos do Poder Executivo como fonte de recursos para tanto (emenda nº 127, de 22.12.2022).
Convém então contextualizar, para acompanhar, o estágio em que se encontra a efetividade dessa determinação constitucional referente à garantia do piso salarial nacional da enfermagem, que já foi objeto de análise nossa em textos anteriores.
O piso salarial nacional da enfermagem foi uma conquista social muito importante para essa categoria profissional e para a sociedade, beneficiada com os relevantes serviços prestados e que foram tão comemorados e justamente homenageados nos momentos mais críticos da pandemia do coronavírus.
Com efeito, primeiro foi promulgada a emenda constitucional nº 124 (em 14/07/2022), que instituiu o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira.
Foram acrescentados ao Art. 198 da Constituição (“As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:[…]”) os parágrafos 12º e 13º, com os seguintes conteúdos:
“§ 12º Lei federal instituirá pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira, a serem observados por pessoas jurídicas de direito público e de direito privado.
§13º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, até o final do exercício financeiro em que for publicada a lei de que trata o § 12 deste artigo, adequarão a remuneração dos cargos ou dos respectivos planos de carreiras, quando houver, de modo a atender aos pisos estabelecidos para cada categoria profissional.”.
O piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho é um direito fundamental social dos trabalhadores (Art. 7º, inciso V). Tal piso salarial deve ser estabelecido em lei federal (afinal, é a União competente privativamente para legislar sobre direito do trabalho – Art. 22, inciso I).
A necessidade de uma emenda constitucional para prever na Constituição a garantia do piso salarial nacional de uma profissão que é exercida tanto por trabalhadores pelo regime jurídico da CLT (e portanto empregados de empresas privadas ou de pessoas jurídicas de direito privado) quanto por servidores públicos (federais, estaduais, distritais e municipais) decorre da autonomia dos entes federativos para dispor sobre o regime jurídico de seus próprios servidores; assim, sem previsão na Constituição, a lei federal não poderia impor a Estados e Municípios o piso salarial.
Com a previsão na Constituição dessa garantia do piso salarial, passa a ser da lógica constitucional a aplicação da lei federal – que, atendendo a determinação constitucional, fixa o valor do piso – também aos Estados e Municípios, nos mesmos moldes do que já ocorre por exemplo com o magistério.
Depois, em 04/08/2022, foi promulgada a Lei nº 14.434, que estabeleceu o piso salarial nacional do seguinte modo: R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) – enfermeiros; 70% do valor do piso – técnico de enfermagem; 50% do valor do piso – auxiliar de enfermagem e parteira, valendo frisar que a emenda 124 determina que todos os entes federativos adequem a remuneração dos cargos ou dos respectivos planos de carreira de modo a atender aos pisos estabelecidos até o final do exercício financeiro em que for publicada a aludida lei; como a lei foi publicada em 2022, essa adequação deveria estar concluída até o final do ano passado.
Assim, o conjunto emenda constitucional nº 124 e lei ordinária nº 14.434/2022 compõe importante, justa e legítima conquista dos profissionais da enfermagem, e produz um regramento muito semelhante à sistemática da regulamentação do piso salarial nacional do magistério [à exceção da atualização anual do valor, prevista para o magistério (que conta com fonte própria de financiamento para tanto) e vetada pelo Presidente da República para os profissionais da enfermagem, por alegada inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público].
Contudo, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSAÚDE) propôs ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 14.434/2022 (ADI nº 7.222), tendo o Ministro Relator, Luís Roberto Barroso, concedido medida cautelar, por decisão monocrática proferida em 04/09/2022, para suspender a sua eficácia “até que sejam esclarecidos os seus impactos sobre a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade, a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa e a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos”.
Posteriormente, essa medida cautelar foi referendada pelo Plenário (por maioria de 7 votos a 4) em 19/09/2022.
Essa foi a motivação, portanto, para que fosse engendrado novo arranjo legislativo que viabilizasse financeiramente o pagamento do piso salarial da enfermagem.
Daí então a rápida tramitação da proposta de emenda à constituição que, aprovada pelo Congresso Nacional, foi promulgada em 22/12/2022 (emenda nº 127).
Foram acrescentados ao já mencionado Art. 198 os §§ 14 e 15, com o seguinte teor:
“§ 14º Compete à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo.
§15º Os recursos federais destinados aos pagamentos da assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo serão consignados no orçamento geral da União com dotação própria e exclusiva.”
Observe-se que foi então determinado expressamente o dever constitucional de a União prestar assistência financeira complementar (aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e às entidades filantrópicas e prestadores de serviços contratualizados que atendem no mínimo 60% dos pacientes pelo SUS) que viabilize os devidos pagamentos dos valores do pisos salarial nacional dessas profissões; contudo, esse dever constitucional foi estabelecido com remissão à necessária regulamentação em lei (“nos termos da lei”).
Nesse quadro, e diante de pedidos formulados tanto de revogação quanto de manutenção da medida cautelar que suspendera a eficácia da lei que instituiu os valores do piso salarial nacional da enfermagem, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, Relator da ADI nº 7222, proferiu despacho (em 30/12/2022) determinando a solicitação de informações ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados acerca da tramitação do projeto de lei regulamentadora da nova disposição constitucional e sobre as condições e possibilidades de efetiva transferência desses recursos da União para as mencionadas entidades.
Espera-se então que, com o recebimento de informações sobre a proximidade da aprovação dessa lei regulamentadora pelo Congresso Nacional e com a garantia da disponibilização dessa assistência financeira complementar pela União, seja revogada a medida cautelar concedida e restabelecida a eficácia da Lei nº 14.434/2022, sendo então efetivamente garantido o recebimento, pelos profissionais da enfermagem, dos valores referentes aos seus pisos salariais, concretizando-se finalmente esse importantíssimo direito fundamental social desses(as) trabalhadores(as).