A Câmara dos Deputados aprovou, na semana passada, projeto de lei que permite e regulamenta a educação domiciliar, fornecida pelos pais, dispensada a frequência à escola e desde que observada uma série de condições e requisitos.
O projeto ainda terá tramitação no Senado Federal e, caso ali aprovado, seguirá à sanção presidencial para, eventualmente, ser promulgada a lei e então entrar em vigor.
Todavia, essa aprovação na Câmara já ensejou um intenso debate na sociedade, com diversos questionamentos críticos quanto à circunstância de que esse modelo de ensino domiciliar pretende mesmo é construir uma sociedade cada vez mais individualista e excludente, sem a noção de comunidade que o ambiente escolar procura desenvolver e proporcionar.
Aqui, examinaremos o tema sob o aspecto jurídico, em especial quanto à constitucionalidade do projeto.
É bem verdade que o STF já decidiu que “[…] não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária” (RE 888.815, julgamento em 12/09/20180.
Contudo, isso não nos impede de apontar conclusões diferentes a que chegou o STF, bem como não impede que, no caso de promulgação da lei, venha a ser proposta uma ação direta de inconstitucionalidade e o STF possa refluir no seu entendimento anterior.
Isso porque é possível extrair do regime jurídico-constitucional da educação, a partir das próprias finalidades constitucionais dessa atividade, que a qualificação para o trabalho não é a única meta e nem tampouco deve ser alcançada desconectada dos seu demais e não menos importantes objetivos: pleno desenvolvimento da pessoa e preparo para o exercício da cidadania (Art. 205).
Parece claro que o pleno desenvolvimento da pessoa, ser social e parte da sociedade, não será alcançado se, ainda em fase inicial de crescimento (no caso, criança e adolescente), seja educada apenas em casa, pela família, sem as necessárias interações sociais que a escola pode e deve proporcionar; nesse sentido, é na escola que as crianças mantêm os contatos iniciais com a vida em sociedade para além das interações meramente familiares. Ou seja, é na escola que crianças e adolescentes vão aprendendo a multifacetada realidade e dinâmica da vida em sociedade e toda a sua complexidade dialógica, que o ensino domiciliar não tem condição de preparar. O ensino domiciliar pode até qualificar para o trabalho no sentido dos conhecimentos e habilidades técnicas das profissões, mas jamais vai conseguir preparar adequadamente para as dinâmicas das relações interpessoais que o trabalho, no mercado ou no serviço público, vai exigir.
Vale frisar ainda que é dever constitucional da família, mas também da sociedade e do Estado, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à convivência comunitária (Art. 227), o que melhor pode se realizar e se concretizar no aprendizado de convivência escolar com semelhantes e diferentes, de contextos assemelhados e diferenciados, para o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para a vida em comunidade complexa, multifacetada e democrática.
Na mesma toada é o que se pode dizer do preparo para o exercício da cidadania, que é também fator de extrema importância para a integração social.
A cidadania é fundamento da República (artigo 1º, inciso II da Constituição) e diz com a dimensão política do indivíduo – isto é, o seu poder soberano de decidir os destinos da sociedade politicamente organizada, quer por meio de representantes eleitos, quer diretamente, através de plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular (art. 1º, parágrafo único, art. 44 e seguintes, art. 14 e art. 61, § 2º), o que é mesmo corolário do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (art. 1º, caput) – sendo atributo do nacional em gozo dos direitos políticos.
A educação é, portanto, indispensável instrumento de preparo para o exercício da cidadania, nos termos em que aqui colocada [exemplifique-se: sem educação, o indivíduo pode não ter conseguido se alfabetizar, ou, em outras palavras, ter se tornado analfabeto; nesse caso, além de menor condição de instrução política e discernimento para o exercício do direito político ativo do voto, da escolha dos seus representantes, ficará privado juridicamente do exercício dos direitos políticos passivos (art. 14, § 4º – “São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”)].
Mas não é só. As escolas devem ter uma gestão democrática [ao menos a escola pública, já que essa é também uma imposição constitucional (Art. 206, inciso VI)], com toda a carga semântica que isso signifique. Gestão democrática não quer dizer apenas que os dirigentes das unidades de ensino devem ser submetidos a um processo de legitimação periódica (eleições), mas também que as atividades administrativas, pedagógicas, financeiras, devem ser parte de um processo de integração da comunidade escolar, que participe diretamente do seu gerenciamento.
É dizer: a gestão do ensino público não deve ser feita mediante um modelo imposto de cima para baixo, sem a participação de todos os atores envolvidos no processo educativo. Ao contrário: todos os atores envolvidos nesse processo devem participar ativamente da gestão escolar.
Aliás, esse é o modelo instituído pela Constituição com relação à gestão pública de um modo geral: é a democracia semidireta, que combina o sistema representativo democrático com mecanismos de participação direta do povo no processo político. Aqui, no inciso VI do art. 206, a Constituição determinou reproduzida, na gestão do ensino, o modelo de democracia semidireta que preconizou para o Estado como um todo (Art. 1º, parágrafo único, c/c Art. 14).
Portanto, nada mais adequado que o preparo para o envolvimento do educando nos assuntos políticos se realize experimentalmente no âmbito da própria escola – estrutura estatal mas sobretudo estrutura e espaço público de integração coletivo/comunitária – avaliando as propostas de gerenciamento das escolas e participando, através de representantes eleitos e também diretamente, de sua gestão.
Vale frisar que, nessa quadra da realidade em que a sociabilidade geral está transformada pela utilização das novas tecnologias de informação e comunicação (sociabilidade cibernética) com nítidas repercussões na política e no exercício da cidadania, é também no ambiente da escola que crianças e adolescentes têm a oportunidade de já se formar e se desenvolver como pessoa nesse contexto mais amplo. Aliás, a utilização dessas novas tecnologias na educação é uma realidade consolidada; o que exige enfrentamento são as questões daí decorrentes, como a própria necessidade de sua universalização, a sua estruturação adequada, os desafios que se apresentam em termos de metodologias do processo de ensino-aprendizagem, a formação/qualificação de professores para lidar com essas ferramentas, a nova sociabilidade do ambiente escolar/comunitário. E o fato é que já proporcionam uma mudança de patamar em termos de participação democrática no ambiente escolar, no sentido de garantia de maior interação e autonomia aos sujeitos do processo, inclusive e especialmente as crianças e adolescentes. Mais ainda, a sua utilização na educação tem, exatamente por esses motivos, potencial para preparar ainda melhor as crianças e adolescentes para o exercício da cidadania, no sentido de uma inserção na vida comunitária participativa e autônoma.
Parece evidente que esse objetivo constitucional da educação também não tem como ser alcançado mediante o ensino domiciliar.
Se duas das três finalidades constitucionais da educação não podem ser atingidas pelo ensino domiciliar (além do que mesmo a qualificação para o trabalho somente poderá ser parcialmente atendida), resulta daí a conclusão peremptória: a Constituição não permite a adoção do modelo de ensino domiciliar, sendo inconstitucional lei que assim o permita e o regulamente.