Aconteceu mais uma vez, no âmbito do futebol, dessa vez de modo muito intenso e concentrado em curto período do mês de abril: em diversas partidas da primeira fase da Taça Libertadores da América, jogadores e torcedores foram vítimas de lamentáveis manifestações racistas:
“No Monumental de Nuñez, um torcedor do River Plate mostrou bananas para a torcida do Fortaleza enquanto colegas riam. No Equador, um fã do Emelec chamava palmeirenses de macacos. A torcida do Estudiantes teve um membro imitando gestos de macaco em direção à arquibancada do Red Bull Bragantino. Na Neoquímica Arena, um torcedor do Boca também se coçava como macaco para os corintianos. Saiu preso, pagou fiança apoiado pelo governo argentino e riu de todos. Foi repetido por um dos torcedores da Universidad Católica diante de rubro-negros em Santiano. Foram cinco casos de racismo contra brasileiros em 15 dias, cinco em duas semanas….” (“Libertadores Racistas das Américas” – Rodrigo Mattos).
No fim de semana passado, o jogador do Internacional Edenilson acusou o adversário jogador do Corinthians, Rafael Ramos, de ter lhe chamado de “macaco”. No final de 2020, o jogador Gerson, do Flamengo, acusou o jogador Ramirez, do Bahia, de lhe ter dirigido desrespeitosa e criminosamente a expressão “cale a boca, negro”.
No Brasil e no mundo inteiro, no âmbito do futebol, esse tipo de comportamento tem sido recorrente.
Sempre que deploráveis manifestações racistas como essas ocorrem no ambiente do futebol mundial, são cobradas as devidas punições pessoais aos agressores, mas também são cobradas as punições esportivas correlatas (interdição de estádio, perda de mando de campo etc.).
Nem umas (punições pessoais, inclusive no âmbito criminal, dos agressores) nem outras (punições esportivas) são suficientes e eficazes (ainda que necessárias) para combater essa chaga mundial que é a discriminação racial contra os negros. E o racismo no futebol nada mais é, infelizmente, do que o racismo que existe disseminado no mundo inteiro, nos mais diversos setores da vida.
É em momentos como esses que a reflexão sobre como combater e erradicar o racismo precisa ir além da mera punição, cujo maior símbolo é a prisão dos agressores. Episódios como esses precisam nos levar a admitir que existe, sim, preconceito e discriminação racial, por mais que muitos sustentem o contrário, ou sustentem que só existe discriminação social, tendo como fator reprovável de segregação o poder aquisitivo. Isso é fato, ainda que essa discriminação racial, eventualmente, não seja explícita, mas habite o inconsciente coletivo resultante de acúmulo histórico.
Reverter esse quadro de discriminação racial contra os negros deve ser objetivo fundamental de nossa sociedade. Mas, para isso, é preciso reverter o referido quadro de inconsciente coletivo racialmente discriminatório.
É impositiva a adoção de uma postura proativa, que interfira diretamente nas relações sociais de modo a proporcionar uma efetiva inclusão dos grupos historicamente marginalizados e discriminados. É nesse contexto que devem ser compreendidas as chamadas políticas de ação afirmativa. Que são políticas públicas que o Estado tem o dever de adotar, como instrumentos da efetivação de tais objetivos. Políticas públicas que abrangem um conjunto amplo de medidas voltadas à progressiva igualação dos negros aos demais na realidade social. Dentre essas medidas, podem ser citadas desde práticas administrativas que incluam programas de educação e conscientização sobre a presença do negro na história brasileira até as chamadas cotas ou reservas de vagas para negros em universidades ou no mercado de trabalho. Sim, porque a Constituição assegura, como direito social dos trabalhadores, a “proibição de critério de admissão por motivo de cor” (Art. 7º, XXX) e, como princípio do ensino, a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Art. 206, I). A realidade, todavia, apresenta quadro inverso. Ou seja: a) a utilização, pelo mercado de trabalho, de mecanismos informais e sub-reptícios de inadmissão de negros aos empregos em geral e especificamente aos empregos de maior destaque e prestígio; b) a desigualdade de condições na disputa por vagas em universidades, desigualdade essa que, à toda evidência, desprestigia os negros. As cotas para negros em universidades e no mercado de trabalho constituem, desde que compreendidas e inseridas no contexto maior das políticas de ação afirmativa, um dever constitucional. Com elas, o Estado abandona a letargia e procura interferir diretamente na realidade discriminatória e segregacionista. Por óbvio, não são excludentes da adoção de outras medidas estruturantes. E também possuem uma destinação temporária: ao passo em que forem progressivamente alcançando o objetivo, devem progressivamente desaparecer [essa discussão, em termos oficiais, já está superada, uma vez que o STF já declarou, com eficácia vinculante, a constitucionalidade e a validade dessas políticas de ações afirmativas tanto por critérios raciais quanto sociais, e já existe todo um instrumental legislativo operativo dessas políticas].
Do contrário, continuaremos a presenciar cenas lamentáveis e degradantes de discriminação racial (explícita ou camuflada), como são exemplificativas as que ocorrem no ambiente do futebol e que ocorreram novamente nos eventos mencionados no início do texto. Ou ainda com agressões físicas seletivas, tendo como marco preferencial de seleção exatamente a cor negra da pele.
O “exemplo” que se dá com a punição dos crimes de racismo ou de injúria racial (ou, no âmbito esportivo, com as sanções esportivas) exercem uma função pedagógica, é verdade, mas de pequeno potencial transformador do inconsciente coletivo discriminatório.
A reversão desse quadro só será realmente possível quando a sociedade se acostumar com a ideia de que negros são realmente iguais aos brancos, e esse costume só virá quando brancos vejam negros ocupando os mesmos espaços de trabalho, ocupando os mesmos espaços de lazer, ocupando os mesmos espaços acadêmicos, enfim, ocupando os mesmos espaços sociais e convivendo normalmente, fraternalmente, como iguais (embora diferentes: igualdade na diversidade).
Isso só será possível com a adoção de políticas públicas inclusivas dos negros nos espaços sociais, de modo a retirar do inconsciente coletivo a noção de hierarquização da sociedade, onde os brancos ocupam os melhores espaços. A visão segundo a qual a adoção das chamadas “cotas raciais” produzirá uma sociedade dividida pelo critério racial, e na qual o fator raça ou cor passe a ser preponderante para o acesso aos bens jurídico é uma visão extremamente equivocada e divorciada da realidade.
Se é verdade que a segregação racial não ocorre majoritariamente através de “movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial”, é verdade também que tal segregação ocorre por vias dissimuladas, com fechamento de espaços de movimentação institucional exatamente pelo critério racial. Do que se conclui que não serão as cotas que criarão no Brasil a discriminação racial, nem serão as cotas que impedirão a concretização do projeto republicano de igual cidadania a todos, independentemente do fator raça.
Ao contrário, a concretização desse ideal encontra obstáculos exatamente no racismo já existente e há muito tempo.
Não é deixando de denunciar tal quadro de exclusão comunitária dos negros na sociedade que conseguiremos construir uma sociedade em que o fator racial não seja relevante para ocupação de espaços de movimentação social e institucional; ao contrário, tal construção exige etapas, como a denúncia, a conscientização, a punição dos infratores e a adoção de políticas afirmativas inclusivas dos negros nos espaços sociais/comunitários. Políticas afirmativas que possuem destinação temporária: devem progressivamente desaparecer, ao passo em que forem progressivamente alcançando o objetivo.
Convenhamos, esse objetivo ainda está longe de ser alcançado.
No ano de 2020, ocorreu um despertar mundial [a partir do assassinato brutal, por um policial, nos EUA, de George Floyd (por sinal, essa é uma realidade cotidiana no Brasil, e que muitas vezes não desperta, infelizmente, a mesma comoção e movimentação ativista), e de toda a mobilização decorrente] da necessidade de não apenas reconhecer e identificar as lamentáveis posturas e práticas racistas em todo o mundo mas também de adotar permanente postura ativa antirracista.
É a nossa obrigação cívica, considerado o objetivo material da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos ou discriminações de raça ou cor.