Lutas feministas e gerais contra opressões e injustiças

A semana passada foi particularmente tensa e intensa em ocorrências – de amplo destaque nas mídias em geral – reveladoras dos mais diversos tipos de opressão e violência contra as mulheres, muito frequentes numa sociedade patriarcal e machista como a nossa.

Violência institucional, partindo do aparato do sistema de justiça, que coagiu ilegalmente uma criança de 10 anos de idade a manter gravidez decorrente de estupro; exposição indevida de dados íntimos de atriz, que precisou vir a público reviver a violência que sofrera (estupro) para contextualizar a circunstância de ter entregue legalmente o bebê à adoção.

Esse quadro precisa nos fazer refletir sobre a importância das lutas feministas e sua inserção contextualizada nas lutas gerais contra as opressões e injustiças concretas próprias do sistema capitalista.

Com efeito, as lutas identitárias em geral são importante marco no quadro geral das lutas pelas transformações sociais, no contexto do multiculturalismo contemporâneo.

Numa sociedade patriarcal e machista, econômica e socialmente estruturada em torno da figura do homem, e na qual tanto os aparelhos de controle e repressão privados quanto o estatal oprimem a mulher, vale registrar os significativos avanços obtidos até aqui no que se refere à afirmação das específicas pautas e reivindicações de gênero.

O feminismo conseguiu abrir espaços para a mulher no mercado de trabalho, com paulatina e progressiva ocupação de postos de trabalho antes absolutamente restritos aos homens – ainda que permaneçam diferenças significativas de tratamento profissional e mesmo de reserva dos melhores e mais bem remunerados postos aos homens [“Apesar de receberem menos que os homens no mercado de trabalho, elas vêm a cada ano ocupando mais espaços. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE/RAIS), de 2012, as mulheres ocupam atualmente 38% dos cargos na medicina, 43% na advocacia e na Justiça e são 60% na área da arquitetura” (BRASIL, SENADO, 2016)], implementar políticas de combate à violência doméstica e familiar, ocupar espaços nos debates públicos contra o tratamento sexualmente discriminatório.

As conquistas acima apontadas se deram tanto no âmbito normativo abstrato (a exemplo do que sucede com as específicas normas constitucionais protetivas das mulheres e impositivas de ações afirmativas de igualdade material de gênero, como as regras de aposentadoria e de garantia de especifica proteção no mercado de trabalho) quanto no âmbito da realização efetiva de programas governamentais.

A abertura para participação formal dos movimentos feministas em conferências e conselhos de participação social também é um capítulo importante desse progresso.

Essas conquistas, todavia, não atingiram o âmago estrutural das relações que geram a exclusão, a opressão e a discriminação de gênero.

Noutras palavras, a despeito da maior presença das pautas de gênero e das lutas feministas, a sociedade permanece patriarcal e machista, e a tomada de decisões, inclusive no que se refere às específicas pautas, permanece tema de amplo predomínio machista.

Vale registrar, por oportuno e importante, que o machismo das sociedades capitalistas é específico em relação ao machismo existente nas sociedades pré-capitalistas, em que o patriarcado se dava pela força (escravidão) ou pela religião/moral (feudalismo).

No capitalismo o patriarcado se dá pela peculiaridade de o homem ser o dono do capital e a forma-valor assumir a forma masculina. O capitalismo constituiu um específico patriarcalismo capitalista. Alguém tem sobretrabalho no capitalismo, e esse alguém é a mulher (MASCARO, 2013).

É não apenas a manifestação do patriarcado tradicional, própria das sociedades pré-capitalistas, mas também e sobretudo a manifestação do patriarcado especificamente capitalista que precisa ser combatida e debelada.

O que sucede com as lutas identitárias de gênero é o mesmo que sucede com as lutas identitárias em geral [Lutas em questões raciais, a exemplo das lutas dos movimentos negros e indígenas, lutas pela dignidade da orientação sexual homoafetiva – movimentos LGBT – lutas dos movimentos de defesa da criança, do adolescente e da juventude, lutas em defesa do meio ambiente, dos trabalhadores rurais sem-terra, dos trabalhadores urbanos sem-teto]: um passo importante, até mesmo crucial, é a sua afirmação identitária, a especialização de suas pautas específicas, a visibilidade dos seus problemas específicos dentro do contexto maior de uma sociedade desigual econômica e socialmente, mas o passo seguinte não tem viabilidade transformadora da realidade estrutural se não acompanhada de uma inserção proativa nas lutas universalistas.

Noutras palavras: não houvesse a específica organização e atuação política militante – dentro do campo daqueles que lutam por igualdade social – das mulheres, dos negros, dos índios, dos homossexuais etc., suas específicas formas de opressão estariam despercebidas dentro do contexto maior da opressão geral-social da sociedade capitalista contemporânea, mas a transformação estrutural dessa sociedade capitalista, base maior da existência de todas as formas de opressão, somente será viável com a reunião (ou até melhor dizendo, “re-união”) das lutas setorizadas em lutas gerais.

Do contrário, além de não atacar as verdadeiras causas da discriminação e opressão de gênero, as lutas identitárias feministas correm o risco de, ainda que tópica e pontualmente, traduzir-se em lutas para que as mulheres sejam exploradas tal como os homens, sem que isso contribua para o alcance das essenciais mudanças estruturais do capitalismo opressor em geral e por isso mesmo opressor em particular das mulheres. Ou ainda de ter-se o cenário de lutas feministas em disputa com lutas de outros segmentos sociais oprimidos, explorados e discriminados, como sucede em casos de criminalização das práticas machistas que resulta muitas vezes em repressão e opressão contra negros e pobres, dentro do fetiche da prisão e do direito penal como justiça e na verdade reprodutor da dinâmica social de controle.

Outro exemplo pode ser apontado no caso da sub-representação das mulheres negras, mesmo quando há uma representação política maior das mulheres em geral.

Nessa toada, ainda que formalmente importante a participação quantitativa das mulheres nos espaços de poder do sistema político-representativo, o mais importante é a direção que essas lutas possam imprimir no sentido de transformação e mudança concreta das estruturas da sociedade capitalista, capaz de ensejar, a partir da superação das causas da opressão, a construção de uma sociedade efetivamente livre, justa e solidária, reduzindo as desigualdades sociais e regionais e  erradicando a pobreza e a marginalização e sem preconceitos ou discriminações de gênero.

Assim, importa tanto que as mulheres acumulem conquistas específicas voltadas à igualdade material no contexto maior de uma sociedade estruturalmente desigual quanto que as mulheres acumulem conquistas voltadas à transformação da sociedade como um todo, a partir da ruptura com as causas estruturais das desigualdades em geral, para com isso atingir o objetivo específico de uma sociedade plenamente caracterizada pela igualdade de gênero, sem sobre-exploração do trabalho da mulher.

Essas lutas, específicas e gerais, estruturais umas e outras, são complementares e não excludentes, devem fazer parte cotidiana de nosso horizonte de lutas da vida em todas as suas dimensões.

 

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*Texto adaptado de trabalho originalmente apresentado no 19º REDOR – Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero, em 17/06/2016, realizado na Universidade Federal de Sergipe, publicado nos anais, disponível em http://editorarealize.com.br/revistas/ebook_redor/trabalhos/gt08.pdf

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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