Mais uma vez uma campanha eleitoral presidencial é realizada com ampla disseminação de fake news. Em 2022 (assim como em 2018), em especial nesse segundo turno, as notícias falsas disseminadas em larga escala têm sido utilizadas como estratégia deliberada para tentar, por essa via, a manipulação da consciência do eleitorado.
É bem verdade que as instituições tentaram se preparar e se equipar melhor para conseguir dar respostas mais efetivas; é bem verdade também que, na comparação com o que sucedeu em 2018, o eleitorado parece estar mais “escaldado”, desconfiando mais das notícias que chegam em escala industrial.
O que assusta, nesse cenário, é a tentativa de emplacar mais fake news, com a estratégia de considerar a atuação corriqueira da justiça eleitoral com base na legislação e com amparo na Constituição voltada para a coibição dessas práticas como se se tratasse de censura.
A liberdade de expressão ou de manifestação do pensamento, independentemente de qualquer censura prévia, é elemento essencial do Estado Democrático de Direito. Seu exercício, liberto de qualquer tipo de amarra, seja do Estado, seja de particulares, compõe requisito inafastável das liberdades individuais e das liberdades públicas e políticas, e se apresenta em variantes que vão desde a simples liberdade de exposição privada de ideias ou pensamentos até a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de cátedra.
No seu núcleo essencial, a liberdade de expressão – no que também fundamentada no necessário pluralismo de uma sociedade dinâmica, complexa e multifacetada – também abrange o direito de crítica, ainda que exercida com veemência, pois o direito de crítica e de oposição de igual modo se integra ao debate público democrático como característica inerente e indispensável.
Todavia, o fato de que é assegurada a todos – inclusive pelos meios de comunicação social – a liberdade de expressão, proibidas quaisquer espécies de censura prévia ou licença, não permite concluir que o seu exercício não se submete a limites.
A própria vedação ao anonimato é corolário de que quem se predispõe ao exercício da liberdade de manifestação do pensamento deve se sujeitar ao exame posterior acerca de eventual extrapolação dos seus limites, que podem ensejar tanto a concessão de direito de resposta ao eventual ofendido quanto responsabilização civil (reparação de danos morais), penal, administrativa e política.
Com efeito, a liberdade de expressão não pode ser utilizada como meio para lesar a intimidade, a vida priva, a honra e a imagem das pessoas; não pode ser utilizada para ofensas pessoais, para falsa imputação de crimes ou difamação da intimidade alheia; não pode ser utilizada para discriminação de qualquer natureza (por exemplo, racial, social, de gênero ou por orientação sexual).
Pois bem, a submissão da liberdade de expressão a tais limites (inerentes à proteção da dignidade da pessoa humana) se apresenta com ainda mais cuidado e atenção para os casos em que exercida por via dos meios de comunicação social. Nessas vias, a mais alta responsabilidade no seu exercício se impõe, tendo em vista o seu enorme alcance e a sua potencialidade de causar múltiplas e quase irreversíveis lesões aos igualmente direitos fundamentais antes mencionados, a exemplo do que pode acontecer devido ao desmedido e irresponsável exercício da liberdade de expressão em veículos como rádio e televisão.
Não é diferente o que sucede no campo da liberdade de expressão nas campanhas eleitorais. Vedada a censura prévia, a Lei nº 9.504/1997 (lei das eleições) prevê diversos regramentos sobre a propaganda eleitoral, propaganda eleitoral efetuada no horário eleitoral gratuito, propaganda eleitoral efetuada na imprensa escrita, na internet; prevê também direito de resposta a candidato, partido ou coligação atingidos, ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social ou pela internet (é aqui inclusive, mais especificamente, que entra em campo o direito de resposta frente às fake news eleitorais).
Demais disso, a lei das eleições prevê também a possibilidade de a justiça eleitoral determinar, no âmbito e nos limites técnicos de cada aplicação de internet, a suspensão do acesso a todo conteúdo veiculado que deixar de cumprir as disposições nela estabelecidas, devendo o número de horas de suspensão ser definida proporcionalmente à gravidade da infração cometida em cada caso, observado o limite máximo de vinte e quatro horas (Art. 57-I da Lei nº 9.504/1997).
Aqui se situa o tema da remoção de conteúdos, que não configura censura, pois a remoção somente poderá ser determinada porque aquela matéria foi livremente publicada (ou postada) independentemente de prévia autorização de quem quer que seja e, acionada posteriormente, a justiça eleitoral entendeu e decidiu que o conteúdo viola as disposições legais e os seus limites, que tem potencial para afetar negativamente a formação do voto do eleitorado. Como parece evidente, para que seja resolutiva esse tipo de decisão, é cabível a concessão de liminar ou tutela de urgência, pois de nada adiantará a remoção do conteúdo ilegal após a realização do pleito respectivo.
Existem, sim, limites à liberdade de expressão. Um deles é a propagação de notícias falsas tendentes a afetar a livre formação da opinião e do voto do eleitorado, caracterizando tentativa de manipulação dos resultados eleitorais e comprometendo a autenticidade da democracia e a soberania popular. Por isso mesmo constitui crime divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado; esse crime é punível com detenção de dois meses a um ano ou pagamento de multa, aplicável também a quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico sobre partidos e candidatos (Art. 323 do Código Eleitoral).
Utilizemos os mecanismos políticos e jurídicos que o Estado Democrático de Direito nos coloca à disposição para impedir que o seu exercício irresponsável e abusivo, com deliberada distorção dos fatos, comprometa a lisura da democracia representativa eleitoral e a soberania do voto popular livre e consciente.