O PL nº 2630/2020 e a regulação das redes

O surgimento e desenvolvimento da internet foi tão transformador que, atualmente, não há aspectos da sociabilidade humana que não a perpassem, valendo para a economia e o mundo dos negócios, o mundo do trabalho, a cultura, as artes, a informação, o direito e a política.

A possibilidade de que qualquer pessoa se expresse livremente e em rápida conectividade com o mundo – sem se submeter a filtro de governos ou dos meios tradicionais de comunicação social (televisão e rádio) – através dos mecanismos proporcionados pelo advento da internet transformou significativamente as relações pessoais, profissionais, as relações de poder e a forma de interconexão pessoal e social-comunitária com o mundo.

Nessa toada, e com o desenvolvimento cada vez mais intenso e crescente das novas ferramentas tecnológicas, foi aberto espaço para uma hiperconexão, em patamares nunca antes alcançados, e cujo crescimento ainda maior é previsto e almejado.

Na política, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação começaram a ser utilizadas a partir da ocupação do ciberespaço e da militância e do ativismo digital, o que veio numa crescente até surpreender o mundo com as diversas mobilizações sociais que se praticaram em novo formato a partir sobretudo do ano de 2010, em movimentos como a “Primavera Árabe”, movimentos na Grécia em 2011/2012, na Espanha em 2011, o movimento Occupy Wall Street em 2011, até mesmo, no Brasil, as denominadas “Jornadas de Junho” de 2013, amplas mobilizações populares que tiveram nas NTIC seu principal instrumento de convocação, chamamento e aglutinação.

Nesse contexto, falava-se em ciberdemocracia (Pierre Lévy), ciberespaço público, a internet como grande ágora, libertária, e que por ela seria possível superar os obstáculos à concretização da democracia participativa, dentre os quais se destacava o controle da pauta pública e da informação pelos oligopólios dos meios de comunicação social de massa (TV e rádio), a chamada velha mídia.

Ao testar dialeticamente a hipótese de que as NTIC têm potencial para a superação desses fortes obstáculos, a despeito de algumas insuficiências, o resultado foi positivo, como pudemos mostrar no livro “Democracia Participativa e as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: desafios e perspectivas”, tendo em vista a percepção de que podem ensejar a otimização dos mecanismos de democracia direta, em especial a iniciativa popular (em que já existe tecnologia e aplicativo pra viabilizar a adesão digital aos projetos de lei pelos cidadãos), bem como podem auxiliar a realização dos amplos e necessários debates que devem preceder as deliberações populares diretas (plebiscitos e referendos) e apresentam-se como ferramentas aptas a fazer frente ao controle do debate público pelas mídias tradicionais, de modo a viabilizar a participação popular democrática e a disputa pelas narrativas, em perspectiva pluralista, como também, finalmente, têm enormes possibilidades de uso na educação, seja na perspectiva da formação da pessoa e de sua qualificação profissional e, sobretudo, já em ambiente digital inclusivo, na preparação qualificada para o exercício da cidadania ativa no ciberespaço e no espaço público ampliado de debates e deliberações.

Todavia, a cada passo significativo que se dá, em cada momento histórico, rumo ao alcance de estágios mais elevados da condição civilizatória humana, existem efetivas tentativas – daqueles que se sentem ameaçados pelas inovações e receosos com a perda ao menos de parte do seu poder – no sentido de conter os avanços, regredir a situação anterior ou domesticar as mudanças, fazendo com que sejam minimizadas as suas potencialidades transformadoras do status quo.

Não é diferente o que sucede com as NTIC de um modo geral e mais especificamente, no que interessa ao presente trabalho, com as suas potencialidades democrático-participativas.

Lawrence Lessig bem descreve a luta, nos Estados Unidos, para enquadrar a inovação tecnológica e a cultura livre – corolário da democracia liberal norte-americana – sob a roupagem de uma luta contra a “pirataria”, e isso nos mais diversos campos da criatividade e da cultura, e o quanto isso representa de ameaça real e concreta às tradicionais liberdades tão empunhadas historicamente naquele país (2004).

De igual modo, é importante assinalar o uso da tecnologia da informação enquanto inteligência estratégica dos países centrais, seja para reprimir a liberdade criativa interna, seja como instrumento de sua atuação geopolítica mundial.  Ao fazer uso das potencialidades das NTIC, à revelia de transparência até mesmo interna a cada país, os governos dos países centrais terminam por revelar muito mais a utilização das novas tecnologias como instrumento das disputas mundiais de poder e menos de maximização das suas possibilidades em proveito das liberdades democráticas e favorecimento do exercício da cidadania.

Vale frisar que parte dessas descobertas, inclusive da prática da espionagem política e econômica internacional mediante utilização das novas tecnologias de informação e comunicação em estágio bem avançado, tornaram-se mundialmente conhecidas também por meio das NTIC em escala global, como foi o que sucedeu com a publicação de informações confidenciais pela WikiLeaks, que se tornou mais conhecida a partir de 2010, quando divulgou informações confidenciais do governo norte-americano.

Essa forma sofisticada de espionagem para fins políticos e geopolíticos foi ratificada com a denúncia efetuada por Edward Snowden de uso, pela NSA (Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos), do programa Prism, que dá acesso aos servidores de empresas e corporações da tecnologia da informação e comunicação como Google, Skype, Facebook, Apple, Microsoft entre outras, de forma tal que, manipulando-os, poderia acessar os e-mails armazenados de milhões de pessoas em todo o mundo, bem como acessar computadores de usuários do Windows.

Pode-se dizer, portanto, que mesmo que não totalmente testadas as suas potencialidades proativas no contexto da democracia participativa, já há um sério embate que envolve, de um lado, grupos econômicos tradicionais (inclusive de proprietários dos meios de comunicação da “velha mídia”) e governos, interessados na domesticação das possibilidades das NTIC e, de outro lado, grupos sociais e políticos que lutam contra essa domesticação, receosos de que o freio à inovação tecnológica, ou o seu controle empresarial/estatal, possa podar a liberdade criativa e os usos em prol da pluralidade democrático-participativa das novas ferramentas tecnológicas e de informação. Os prognósticos desse embate, evidentemente, são imprevisíveis, mas é forçoso reconhecer, de um lado, a necessidade de que o poder econômico e o poder estatal não consigam levar a efeito a domesticação das ferramentas das NTIC e, de outra banda, o reconhecimento implícito de suas criativas potencialidades para a maximização das liberdades democrático-participativas.

Há, todavia, outra vertente do que se pode apontar como tentativa de domesticação das potencialidades das NTIC, tão ou mais perigosa quanto as acima descritas, e que em parte é uma de suas variantes.

Trata-se da própria possibilidade de uso social e politicamente indevido das potencialidades tecnológicas das NTIC, seja por parte de governos (como já mencionado), seja por parte dos novos grupos econômicos proprietários de grandes empresas desenvolvedoras do universo de utilidades, aplicativos e ferramentas tecnológicas mundialmente difundidas, as chamadas “Big Thechs”.

Com efeito, citando Louis Brandeis como um dos maiores juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, para quem a inércia do povo é a maior ameaça à liberdade, Sustein defende que a democracia deve impedir a censura como corolário da liberdade de expressão, de modo que seja assegurado que as pessoas tenham livre acesso às diversas e diferentes perspectivas de vida. Porém, adverte que a liberdade individual e a autonomia individual da vontade não devem redundar na personalização e na perda do sentimento de comunidade, que é o risco proporcionado pelo modelo de vida que as sociabilidades contemporâneas estão desencadeando.

Essa forma de selecionar e filtrar o que as pessoas acessam em suas comunidades virtuais adotada pelas redes sociais ,além de abrir margem para a manipulação comercial e política dos interesses dos usuários, é uma forte limitação às potencialidades das NTIC na ciberdemocracia, na medida em que atuam semelhantemente aos grupos empresariais que concentram a propriedade dos meios de comunicação tradicional, filtrando conforme seus interesses o debate público.

Esse modus operandi das redes sociais faz com que sejam criados algoritmos em inteligência artificial no qual a previsibilidade da conduta humana a partir dos comportamentos on-line pode atingir elevados e confiáveis níveis de acerto, podendo ser utilizados para fins comerciais e políticos, em boa ou má intenção, já que a tecnologia em si é instrumento, ferramenta, sendo a sua utilização uma questão de construção social, como bem advertiu Martin Hilbert – assessor de tecnologia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e apontado como “guru” do “Big Data”.

A inteligência artificial, estágio tecnológico ainda mais avançado a que as novas tecnologias podem confluir, tem enorme potencial para se apresentar, no atual contexto de crise e no horizonte de perspectivas, como elemento propulsor de níveis de desigualdades alarmantes e de difícil reversão, como bem alerta o Professor israelense Yuval Harari.

O modelo de sociabilidade digital moldado pelas redes sociais por meio das plataformas poda o caráter criativo e livre da internet original, gera fragmentação comunitária, alimenta discursos de ódio e extremistas por meio de engajamento em bolhas e é assim economicamente sustentado; é nesse modelo que proliferam em massa as “fake news” e consciências e comportamentos são moldados sub-repticiamente, pois algoritmos nada transparentes filtram as informações que devem chegar a cada usuário sem que sequer perceba a modelagem de seu comportamento, seja como consumidor, seja como cidadão, fazendo a enorme lucratividade desse modelo de negócios e pelo qual se isentam de quaisquer responsabilidades, tudo sob a roupagem da liberdade de expressão, que em boa verdade ignora o direito à informação da sociedade.

É nesse contexto que surge o debate mundial de regulamentação das redes, e é nesse contexto que, no Brasil, está na pauta da Câmara dos Deputados, após aprovação pelo Senado Federal, projeto de lei que disciplina a matéria (PL nº 2630/2020, conhecido como PL das Fake News), e que será objeto de comentários nossos ao longo das próximas semanas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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