Enquanto a equipe de transição negocia com o Congresso Nacional alternativas para ajustes no orçamento do próximo ano (para compatibilizá-lo minimamente com propostas apresentadas pela candidatura vitoriosa no pleito presidencial), com prioridade para a garantia da alocação de recursos suficientes para pagamento do bolsa família no valor de R$ 600,00 mais acréscimos de R$ 150,00 por crianças de até seis anos de idade, noticia-se o “nervosismo” do mercado com o que seria a sinalização para o rompimento do teto de gastos e portanto abertura para o “rombo” nas contas públicas.
Importante, então, relembrar a origem do “teto de gastos”, instituído no ordenamento jurídico constitucional com a emenda nº 95/2016, e que representou a imposição de enormes entraves ao desenvolvimento socioeconômico do país, sob a roupagem da moralidade pública.
Com efeito, sob o verniz de controle da elaboração do orçamento e estabilização das contas públicas, os investimentos públicos foram congelados – tomando como referência as despesas realizadas em 2016 – com atualização anual apenas pela variação do INPC, mediante a imposição de um limite de gastos individualizado por Poderes e órgãos.
Isso significou o congelamento por vinte anos dos parcos investimentos sociais realizados em 2016, enfraquecendo a necessária e obrigatória atuação do Estado em políticas públicas sociais e até mesmo limitando o planejamento econômico governamental, que deve ser voltado para o desenvolvimento nacional e redução das desigualdades sociais e regionais, objetivos fundamentais da República (Art. 3°, incisos II e III da Constituição).
Nada mais significativo do verdadeiro intuito dessa emenda foi o seguinte trecho da exposição de motivos da proposta apresentada, em 2016, pelo então Presidente da República Michel Temer – com exposição de motivos subscrita pelos Ministros da Fazenda Henrique Meirelles e do Planejamento Dyogo Henrique de Oliveira – que revelava abertamente a gravíssima intenção de acabar com a obrigatoriedade constitucional dos gastos mínimos com educação e saúde:
“Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico da despesa pública, é essencial alterarmos a regra de fixação do gasto mínimo em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que as despesas com saúde e educação devem ter um piso, fixado como proporção da receita fiscal. É preciso alterar esse sistema, justamente para evitar que nos momentos de forte expansão econômica seja obrigatório o aumento de gastos nessas áreas e, quando da reversão do ciclo econômico, os gastos tenham que desacelerar bruscamente. Esse tipo de vinculação cria problemas fiscais e é fonte de ineficiência na aplicação de recursos públicos”.
Vale frisar que, além do congelamento dos investimentos nas áreas sociais prioritárias, o “teto de gastos” representa também a redução da alocação e execução orçamentária em áreas de investimentos discricionários (não determinados com obrigatoriedade constitucional), pois anualmente os gastos constitucionais obrigatórios se expandem (como ocorre com os gastos com educação e saúde pelo simples aumento de sua cobertura quantitativa) e, para o teto não ser rompido, é necessário reduzir mais e mais as despesas discricionárias, ainda que representem políticas públicas importantes.
A aprovação da emenda nº 95/2016 e sua aplicação ao longo desses anos já traduziu rompimento com o Estado Social, muito antes de sua razoável efetivação, seguindo na contramão da implementação progressiva dos direitos sociais, econômicos e culturais, tal como o Estado brasileiro se comprometeu ao firmar o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Confira-se o que dispõe o Pacto:
“Parte II – Art. 2º Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (destacou-se).
Portanto, reverter os graves e nocivos efeitos da emenda do retrocesso social (a aludida emenda nº 95/2016 ou emenda do “teto de gastos”), além de significar uma imperiosa necessidade de retomada da implementação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, determinada na Constituição e no Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, traduz necessidade de implementação das políticas aprovadas democraticamente pelo eleitorado, uma vez que a sua revisão foi objeto de explícita proposta apresentada durante a campanha eleitoral.
Esse “nervosismo” do “mercado” é mais do mesmo do esperneio do capital financeiro em defesa de seus interesses, que não se viu quando o Congresso Nacional e o Governo Federal tiveram de adotar medidas que implicaram superação do teto de gastos para lidar com os problemas decorrentes da pandemia global do coronavírus, ou mesmo quando, já em meio ao processo eleitoral, foi aprovada emenda à constituição para introduzir gastos não previstos com nítida finalidade eleitoreira.
Os efeitos dramáticos da pandemia do coronavírus (e de sua péssima gestão governamental) na saúde e na economia já deveriam ter servido para a conclusão do quão necessária é a revisão do modelo ultraliberal de economia.
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária (objetivo fundamental da República Brasileira, nos termos do Art. 3º, I da Constituição) passa pela superação desse modelo econômico, como mais uma vez a humanidade e em especial a população brasileira está a perceber, de forma dramática, ao constatar a imprescindibilidade de serviços públicos e políticas públicas universais de atendimento das prioridades fundamentais, o que necessariamente passa pela revisão do teto de gastos e da emenda nº 95/2016.