Sem anistia para o golpe: a democracia não se negocia

Com o início do julgamento do ex-Presidente da República Jair Bolsonaro (e das altas ex-autoridades da República, inclusive militares) pela acusação do cometimento dos crimes de golpe de estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, as movimentações políticas dos segmentos da extrema direita (com o suporte de segmentos do “centrão”) em prol da aprovação da anistia vão ficando mais escancaradas e ofensivas.

Já havíamos comentado aqui mesmo neste espaço da Infonet que a tentativa da bancada do PL e de apoiadores do bolsonarismo de pautar e aprovar proposições legislativas que viabilizem a anistia a Jair Bolsonaro e/ou contribuam para que não sofra punição pelos crimes de que é acusado e até possam restabelecer sua elegibilidade (inelegível que está porque condenado pelo TSE por abuso de poder nas eleições de 2022) – como a proposta de emenda à Constituição que retira a competência do STF para julgar ex-presidentes da República por crimes cometidos durante o exercício funcional – era parte de um golpe que não acabou, um golpe permanente contra a democracia, contra as instituições democráticas e contra a nossa soberania, contando com apoios internacionais do governo dos Estados Unidos, sob liderança de Donald Trump, e dos senhores feudais do tecnofeudalismo, as Big Techs.

Com efeito, no avanço das articulações políticas, foi apresentada uma minuta do projeto de lei que estabelece anistia ampla, geral e irrestrita a todos os envolvidos em ações e manifestações antidemocráticas desde 14 de março de 2019, marco da abertura do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal. A proposta, liderada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), é juridicamente absurda e politicamente temerária, na medida em que abrange uma gama de condutas que vai muito além dos limites constitucionais do instituto da anistia.

A minuta do projeto concede perdão a atos que vão desde manifestações verbais contra instituições, passando por disseminação de fake news, financiamento e logística de acampamentos golpistas, até a participação nos atos criminosos do 8 de janeiro de 2023, que culminaram na depredação das sedes dos Três Poderes. A proposta inclui ainda a anulação de penalidades civis, administrativas, eleitorais e criminais, inclusive com efeitos retroativos e futuros, atingindo até mesmo inelegibilidades já declaradas pela Justiça Eleitoral.

Mais do que um escárnio jurídico, trata-se de um projeto político de impunidade programada. Um salvo-conduto generalizado que pavimenta o caminho para a reabilitação eleitoral de Jair Bolsonaro e outros agentes centrais da tentativa de golpe, criando um perigoso precedente de absolvição legal de crimes contra a democracia.

A gravidade do projeto não reside apenas em seu conteúdo, mas no simbolismo e na estratégia que o sustentam. A expressão “anistia ampla, geral e irrestrita” – historicamente associada à luta pela redemocratização do Brasil no final da ditadura – é aqui manipulada como mecanismo de blindagem de quem atentou contra o próprio Estado Democrático de Direito.

Se aprovada, essa proposta representará um marco trágico: o Estado brasileiro institucionalizando o esquecimento e legitimando a impunidade. Romperá, frontalmente, com a Constituição de 1988, cujo artigo 5º, inciso XLIV, qualifica como inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Além disso, afronta a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que veda anistias em casos de graves violações de direitos humanos ou atentados à ordem democrática.

O projeto pode até ser aprovado pelo Congresso, com possível veto presidencial seguido de derrubada desse veto. Mas, nesse caso, deverá ser alvo imediato de Ação Direta de Inconstitucionalidade, e caberá ao STF declarar sua nulidade — reafirmando, uma vez mais, que não há espaço, na ordem constitucional vigente, para indulgência a crimes de lesa-democracia.

Contudo, é preciso reiterar que não basta confiar apenas na atuação do Supremo Tribunal Federal, ainda que ele tenha cumprido um papel fundamental na contenção das investidas golpistas. A defesa da democracia não é monopólio das instituições; ela depende, sobretudo, do compromisso cívico da sociedade. A tentativa de transformar em lei uma espécie de apagamento jurídico e moral dos atos antidemocráticos deve encontrar resistência ativa da opinião pública, das universidades, das entidades da sociedade civil e dos meios de comunicação comprometidos com a verdade e com os princípios republicanos.

A democracia brasileira não será protegida apenas nas salas de julgamento. Ela se defende também nas ruas, nas escolas, nas redes, nos espaços públicos de debate. A aprovação de uma anistia como essa não é apenas um erro jurídico — é uma ruptura simbólica e política com os pilares do Estado de Direito. E, como tal, precisa ser tratada com a seriedade e a urgência que o momento exige.

Não se trata de revanche, nem de vingança. Trata-se de justiça. E justiça, em uma democracia, só se cumpre com responsabilidade, memória e verdade. Sem anistia para crimes contra a própria democracia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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