Se é verdade que o Supremo Tribunal Federal tem sido, nesses últimos três anos, instituição garantidora da democracia e que tem contido os abusos e arroubos autoritários bem como ameaças de rupturas institucionais que flertam com golpes e fechamento do regime, tudo isso além do seu importantíssimo papel na contenção dos efeitos do negacionismo na condução das medidas de prevenção e combate ao coronavírus ao longo de toda a extensão da pandemia – que ainda não acabou – é verdade também que, não é de hoje, tem sido uma instituição que, no plano dos direitos e garantias fundamentais sociais e econômicos, tem atuado cada vez mais no sentido de conter os enormes avanços no tema determinados pela Constituição de 1988 e pelas convenções internacionais, em prejuízo dos trabalhadores e em benefício do poder econômico.
O mais novo capítulo dessa específica trajetória, que acompanha e referenda a onda legislativa mais recente de enormes retrocessos sociais, ocorreu com o julgamento de mérito da ADPF nº 323, decisão tomada na sessão virtual encerrada em 27/5/2022.
Nesse julgamento, o STF declarou a inconstitucionalidade da Súmula nº 277 do Tribunal Superior do Trabalho (“As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”) assim como a inconstitucionalidade de interpretações e de decisões judiciais que assentam o entendimento de que o Art. 114, § 2º, da Constituição Federal (na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004) autoriza a aplicação do princípio da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski.
Assim, é cessada em definitivo aplicação do princípio da ultratividade, segundo o qual, terminado o prazo de validade das cláusulas pactuadas em negociações coletivas, e sem que sejam reafirmadas em novo acordo coletivo, elas são incorporadas aos contratos individuais de trabalho vigentes ou novos, até que outra norma coletiva venha a decidir sobre o direito trabalhista.
Decidiu a maioria, acompanhando o Relator Ministro Gilmar Mendes, que a nova redação da Súmula 277 do TST, adotada em 2012, é incompatível com os princípios da legalidade, da separação dos Poderes e da segurança jurídica, sendo que questões sobre o tema já foram apreciadas pelo Poder Legislativo em pelo menos três ocasiões: na elaboração e na revogação da Lei 8.542/1992 e na Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017).
Ora, ao editar a Súmula 277 (nos termos da Res. 185/2012), o TST apenas adotou a teoria da ultratividade relativa, vertente interpretativa que estipula a prorrogação da vigência das cláusulas contratuais até a sua revogação por um novo pacto coletivo de trabalho, de forma a incorporar o elemento da estabilidade, ao viabilizar a perpetuação da vigência das cláusulas normativas, mas com preservação a liberdade contratual , uma vez que o efeito da ultratividade perdura somente até a celebração do novo instrumento coletivo, cujo conteúdo não está vinculado ao pacto anterior, de acordo com o entendimento esposado pelo Ministro do TST Maurício Godinho Delgado, reproduzido no voto vencido da Ministra do STF Rosa Weber.
Nas precisas palavras da Ministra Rosa Weber, “A maior vantagem da adoção do critério da ultratividade relativa é o fato de conferir segurança jurídica às relações de trabalho, especialmente no período entre o fim da vigência do instrumento coletivo anterior e a pactuação do subsequente, ao assegurar um regime jurídico provisório
nesse intervalo de tempo, preenchendo o limbo jurídico decorrente do impasse negocial”.
Importante aqui também mencionar que a Súmula 277 do TST, assim como as interpretações judiciais que enxergam no Art. 114, § 2º, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, autorização para aplicação do princípio da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, foi uma feliz e necessária resistência hermenêutica para a proteção dos trabalhadores frente ao impasse negocial.
Com efeito, na redação original, a Constituição assegurava aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo – em que a Justiça do Trabalho poderia estabelecer normas e condições (respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho) – em caso de recusa de qualquer das partes à negociação coletiva; com a emenda 45/2004, a referida norma constitucional (Art. 114, § 2º) passou a exigir que o ajuizamento do dissídio coletivo se faça de comum acordo. Assim, a parte hipersuficiente passou a ter a condição de se recusar à negociação coletiva e se recusar também ao ajuizamento do dissídio coletivo, deixando os trabalhadores no vazio das normas convencionais vencidas enquanto perdura a luta para forçar a negociação ou o acordo para ajuizamento do dissídio.
Com bem expôs a Ministra Rosa Weber: “[…] sem o consenso necessário à celebração de nova convenção coletiva de trabalho e sem a possibilidade de acesso ao Judiciário – em razão de ser condição desse acesso, reitero à exaustão, o acordo comum exigido pela nova regra constitucional (CF, art. 114, § 2º) –, tornou-se habitual a expiração do prazo de vigência dos instrumentos coletivos, a gerar um cenário de incerteza quanto ao regime jurídico vigente entre o término do contrato coletivo anterior e a celebração do instrumento coletivo subsequente , diante do impasse entre os sindicatos e os empregadores. A insuperável situação de anomia no âmbito das relações de trabalho ocasionava um quadro de desrespeito à dignidade dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que estavam desprotegidos diante do exaurimento dos efeitos do contrato coletivo, encontravam-se desesperançosos diante da falta de perspectiva do inatingível “comum acordo” gerar um cenário de incerteza quanto ao regime jurídico vigente entre o término do contrato coletivo anterior e a celebração do instrumento coletivo subsequente, diante do impasse entre os sindicatos e os empregadores.”.
Assim, o que a Súmula 277 do TST fizera foi, considerados os princípios da vedação do retrocesso social e as normas constitucionais (Art. 7º, XXVI) e convencionais (Convenções nº 98 e da 154 da OIT) assecuratórias da negociação coletiva e do direito sindical como garantias de proteção dos trabalhadores, prestigiar a determinação constitucional dos seus direitos sociais fundamentais constantes do Art. 7º e em toda a legislação infraconstitucional como mínimo existencial de dignidade, garantindo a força da negociação coletiva rumo à progressividade desses direitos a se conquistar e que visem à melhoria de sua condição social.
Ao decidir como decidiu, o STF mais uma vez confirma, para além de sua habitual desconsideração com o direito coletivo do trabalho, a sua jurisprudência reiterativa em não concretizar os objetivos constitucionais de proteção efetiva dos direitos sociais e econômicos dos trabalhadores.