Memórias de Ariosvaldo Figueiredo
Ariosvaldo Figueiredo é mestre em todos os sentidos. Desde a sua entrada como professor titular da Universidade Federal de Sergipe à sua formação acadêmica como advogado, engenheiro agrônomo, jornalista e tantas outras carreiras que o consagrou definitivamente como homem de muitos talentos, muitas vivências e histórias.
Acaba de lançar suas memórias “Eu Vivi, confesso”, lembrando o genial Pablo Neruda em “Confesso que Vivi”, uma homenagem ao poeta chileno libertário e livre como Ariosvaldo.
A história de vida de Ariosvaldo Figueiredo não é simples. É muito complexa, rica em detalhes e personagens, própria de uma pessoa que agarrou com unhas e dentes o desejo de ser feliz num mundo insensato. Ao perguntar a ele se aos 83 anos é um homem feliz é categórico: “sempre fui feliz e sou. Nunca tive angústia, depressão, nunca tomei remédio para dormir, nunca precisei de terapia. Quando a vida me disse não, eu prosseguia a caminhada. “ Ariosvaldo Figueiredo é talvez um dos últimos resistentes da história viva do jornalismo, da política, da cultura de Sergipe.
Neste livro de memórias ele visita a família e a sua terra natal, Malhador, onde nasceu em 1923. Enaltece sua terra , lembrando ao leitor que ele já escreveu um livro “História de Malhador”, sem esquecer suas origens, rememorando que o Governador Arnaldo Rollemberg Garcez ao criar mais 19 municípios em 1953, Malhador passou a ser um município autônomo, independente. Soberano. Livre. E considera-se filho de Malhador legítimo, além das ligações que a cidade já manteve com Riachuelo. “Malhador coberto de matas, muitas fontes e riachos…” E nas memórias surge a figura única do seu pai, Alcides Borges Santos. Alcides é filho de José Borges e Maria Vieira de Melo. “A vida para meu pai, no começo, foi dura, ingrata, difícil, jogado no mundo sem ninguém por ele. Mas não fugiu, não desesperou.” “Aprendi a ler e a escrever com meu pai, ele ensina ora de dia, ora de noite, depende dos seus afazeres. Meu pai me ensina com a palmatória ao lado. Nunca gostei. Chegava a ter medo. A palmatória inibe, frustra a lição. Compreende-se, meu pai não é pedagogo. Ele traz a palmatória, mas não a usa. A preocupação com o filho é maior. A palmatória, de qualquer forma impõe disciplina. A disciplina é fundamental na vida do indivíduo e da sociedade.” Sua mãe, Maria de Lourdes, “diferentes em formação e temperamento estão unidos, contudo, pela família e amizade. Nenhum dos dois conhece pedagogia, mas entende de inteligência, responsabilidade e caráter.”
Ariosvaldo Figueiredo em suas memórias, dá um atestado de vida absoluta, vida vivida em sua plenitude. Lembra que nunca foi o menino quieto, comportado, conformado com o mundo nem as coisas. “Não gosto de lembrar, mas um dia fui para a cama, problema de intestino. Ninguém imaginava a seriedade do caso. Além do carinho meu pai, dono de farmácia, sabia tratar os doentes. Mas no meu caso, a coisa ficou feia(…) O médico como que me desenganou(…) Não sei como, nem quando. Sei que meu pai preparou uma “Garrafada”. Perdido por perdido, tenho que dar isso ao meu filho. Bem cedo, no outro dia, os intestinos parados, voltaram a funcionar. Sobrevivi.” Sobreviveu mesmo. Ariosvaldo é um guerreiro na luta. Nunca emudeceu ante as injustiças, seus pontos de vista foram sempre muito claros, sem dissimulações, nem mentiras. Gosta dele quem quiser. Não há meio termo. Ou ama-o ou deixa-o.
Em suas memórias ele consegue formar uma obra literária densa em diversos aspectos. Desde Gore Vidal em “Palimpsesto”, à Pedro Nava em “Cera das Almas”, Vinicius de Moraes em “O poeta da paixão” e tantos outros, memórias é sempre um gênero literário em alta, autobiográfico ou não, com excelências como Sthefan Zweig de Alberto Dines e em um livro célebre de memórias, o americano Ernest Hemingway escreveu que Paris nos anos 20 era uma moving fest – uma “festa móvel”, onde nomes como Pablo Picasso, F. Scott Fitzgerald e Gertrude Stein viviam se trombando. Mas não era só na Cidade Luz, na década de 20, que grupos de intelectuais das tendências mais diversas – mas com alguma coisa em comum – acabavam se sentindo atraídos uns pelos outros para um gole de absinto e um papo-cabeça. Nova York, por exemplo, produziu o grupo do Hotel Algonquin, onde despontava a apimentada Dorothy Parker, que varava noites em tertúlias intelectuais e comentários mordazes sobre tudo e todos. E em Londres também. Só que, noblesse oblige, o grupo formado em torno de Virginia Woolf, sua irmã Vanessa Bell, o escritor Lytton Strachey e o economista Maynard Keynes, entre outros, era um pouco mais, digamos, comportado. Pelo menos para consumo externo. Ariosvaldo não pode dizer que Aracaju é uma festa! Ele é que fez uma festa da vida, um grande banquete, onde ele pode sentar à mesa de cabeça erguida , confessando que viveu. Aos 83, Ariosvaldo é muito mais lúcido que muitos jovens, sábio, cheio ainda de sonhos e grandes emoções que enchem seus olhos de lágrimas ao lembrar da sobrinha Valéria Figueiredo, filha de Annete , que pegou um avião de Miami só para vim vê-lo em Aracaju.
Ariosvaldo lembra que “a maioria dos amigos daquele tempo, da sua juventude, não vive mais. Com cada um deles vai um pedaço da gente.” – confessa. “Sanguíneo, inquieto, sou visto, em casa, como problema. Ao contrário de mim, Astrogilda, Alberto, Almir e Adelci são bem comportados, não dão trabalho.”
O seu livro de memórias é também um retrato do Brasil que para ele é, por formação, corrupto e golpista. O Estado não é nação.
Em suas memórias, o homem que sempre dirigiu o próprio carro, morou no Rio de Janeiro e em Minas, viajou pelo mundo, e pelas pessoas do mundo, fala da sua juventude, época estudantil e maturidade. Tudo contado com paixão, sem esquecer pessoas, datas, lugares e acontecimentos históricos que marcaram este tempo. Sempre um apaixonado pelas artes plásticas, pela música regional, pelo cinema e pelo teatro.
“Estou livre. Sou livre. Mas não tenho ilusões, enquanto a sociedade brasileira for pobre, desigual, injusta, doente, ignorante, supersticiosa, haverá o risco do Golpe. Golpe da burguesia” – escancara. E garante: “O Brasil não tem governantes. Tem oligarcas.” E vai mais além: “apesar das pressões e perseguições, não perco o amor à vida, o desejo de viver. Vivo bem. Vivo muito. Com os pés e os olhos pregados na realidade, continuo aberto ao afeto e ao sonho. Encontro antigas namoradas, não fecho a porta para a chegada de outras.” Não perdendo nunca a fama de que sempre foi um grande namorador. Garante que nunca teve uma decepção com nenhuma de suas paixões. E que a mulher, é a mais perfeita invenção de Deus.
A cidade maravilhosa, o Rio do Cristo Redentor, adotada por Ariosvaldo Figueiredo como segunda casa, é cantada em verso e prosa. O apartamento no Flamengo, à rua 2 de dezembro, cenário de muitas emoções é imortalizado. Agora, no bairro Laranjeiras, em amplo apartamento, o autor de “Vivi, confesso” é categórico: “Sempre vivi só. Nunca me senti sozinho. Só tem medo da solidão quem não é nem nunca foi solidário.
O livro traz também seus grandes desafetos. Homens e mulheres com fatos e porquês. Não mede as palavras. É radical, sem ser sectário. Quando rompe, rompe mesmo. Ariosvaldo não tem duas caras.
Ariosvaldo divulga carta de Passos Porto que exprime um pouco da sua trajetória, ele que, homem preso na ditadura, mudando muitas vezes o curso de sua vida, sabendo chorar calado, às vezes, e sempre voltando inteiro como no poema “aprendi com a primavera a me deixar ferir e a voltar sempre inteiro.” Passos Porto revela: “Fomos contemporâneos, colegas e amigos. Passamos anos de silêncio, até de divergências, de desentendimentos e incompreensões(…) Você tem sido um lutador obstinado. Respeito a sua coragem de enfrentar a elite do seu tempo. Alia-se o seu talento e a criativa análise dos fatos e circunstâncias. Sua perenidade está naquilo que você disse, fez ou escreveu(…) Creia-me seu admirador eterno.”
A vida também é de saudades. Garante que perdeu grandes amigos. Os maiores: Thiers Gonçalves de Santana, Orlando Dantas, Eurico Amado e Jaime de Araújo Andrade.
“Minhas “Memórias” são o claro e o escuro, o feio e o bonito da minha vida. E do meu tempo” – diz o autor. Mais que um professor, advogado, engenheiro agrônomo, jornalista, Ariosvaldo é mesmo um escritor. Autor de mais de 20 livros, ele nunca abandonou a literatura, sendo articulista da Gazeta de Sergipe durante anos, autor do livro de crônicas “A vida é que conta”(1961), “Dialética do Sexo e do Amor”, ensaios(1975), “O Negro e a Violência do Branco”(1977), “Enforcados”(1981), História Política de Sergipe(1986), coleção e estudos, “Ciências Sociais, Barbárie e Socialismo” (1997), “Sergipe: Roça Iluminada”(2003), “Questões de Direito”(2006) e tantos outros. Dono do talento que fez Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Acrísio Torres e tantos outros, Ariosvaldo sempre soube que é na palavra que a ira e o amor se imortalizam. Seu livro de memórias é um filme. Filme que comove, que a gente fica pequeno diante da grandeza e coragem deste homem: homem pleno, livre, completo.
Em seu livro ele diz: “ escrevi sobre a minha infância, a minha maturidade e a minha velhice. Não sofro por ser velho ou, se quiserem, idoso(…)”
O livro “Eu vivi, confesso” é um retrato vivo de um homem que fez da vida a grande revelação da própria vida. E da vida iluminou o mundo. E o mundo devolveu a ele toda esta luz. “Eu sonhei na infância. Sonhei muito na velhice, Não me lembro de ter sonhado na velhice. Não houve tempo para sonhar. Aprendi e ensinei. Ninguém vive bem, ninguém é feliz sem honestidade, conhecimento e solidariedade. Apesar de ser perseguido, intrigado, xingado e caluniado, vivi muito. Vivi bem. Fui feliz. Paguei o preço. E mais pagaria.” – conclui.
Arisovaldo Figueiredo, admirável mundo novo, é a mais gloriosa constatação que viver é fundamental e que o ser humano ainda é a mais bela invenção de Deus. Um esgrima do pensamento, um desbravador de mundos e conceitos – assim garante o seu espaço no firmamento das letras e das idéias. Um homem pleno, confessando-se aos 83 anos.Para dizer com a alma: “ Eu Vivi, confesso.”