Meu tio, o encantado

Eu tenho um tio que é um encantado. Encantado: daqueles seres que viram árvore, bicho, rio, chuva e desviram em gente. Sertanejo, encourado, aparecia na porta dos fundos da casa da minha tia todo dia de feira. Vinha aboiando, cantando toada. Ê boi besta, ê minino franzino. Meu coraçãozinho criança falhava uma batida só de ouvir aquela voz e a risada que preenchia toda a casa. Ele parecia um gigante eclipsando a luz do sol quando parava naquela porta e soltava um bons dias pra quem estava ali pela cozinha. Perguntava pela irmã, dona da casa, e gritava por ela. Quando via a mim e a meu irmão, perguntava pela irmã minha mãe. E aquela caboca, tá boa?

Entrava em casa e tirava o chapéu de couro, respeito aos espíritos da casa. Pousava o chapéu na mesa e o corpo na cadeira. Dois dedos de café com muito açúcar. Falava da vida, coisas da roça, os bois, as plantações. E eu me perdia quieta, calada no meu canto, olhando as roupas de couro do encantado. Certeza que ele virava bicho quando saía dali e só desvirava em gente quando alguém olhava. Caboquinha réia. Me chamava, e eu toda feliz de ser uma caboquinha. Às vezes, trazia balas pros sobrinhos e pros de casa, às vezes trazia umas coisas de encantado: buchada, um bode vivo, umas tripas para serem fritas.

Um dia chegou pela porta da frente, coisa rara. Gritou de lá e a molecada em debandada atendeu na porta. Montado no cavalo, todo encourado, com um berrante na mão: um encantado, o meu tio. Os meninos fizeram a festa. Acho que ele deixou todos brincarem com o berrante. Eu sempre fui das que só olha de longe, quieta, só guardando o de lembrar mais tarde. E esse ôio de gude, caboquinha? Eu, orgulhosa de ter olhos de gude. Ele cantava os aboios e eu me encantava daquela voz saída sabe-se lá de onde, daqueles versinhos que tocavam o coração de quem ouvia.

Passamos muitos anos sem nos ver, pra nos reencontrarmos no enterro de meu avô, pai do encantado. Sentado no alpendre da casa da roça, corpo sendo velado na sala, as velhas da região cantando os benditos. Quando me viu, gritou de lá, encantado, mas já não mais um encourado. Caboquinha réia, enricou foi, que nunca mais veio vê esse povo? Eu, feliz de ainda ser uma caboquinha réia.

Há muito tempo deixou de ser vaqueiro de boi pra ser vaqueiro de abelha, como ele mesmo me disse, certa feita. Não é mais encourado, conserva só o chapéu surrado pendente da cabeça. Cansado, envelhecido. Sem os olhos da infância, já não é mais um gigante, é agora um caboco atarracado. Encantado. Queria ouvi-lo aboiar outra vez, mas não é direito aboiar em velório. E essa ferida na perna, tio Dão? Seguindo os passo de dona Ana, é? (Dona Ana, minha vó, diabética, nunca que curou a ferida na perna e morreu assim, mas as histórias dela, conto outro dia.) Meu tio, o encantado, diabético, com a mesma ferida, no mesmo lugar. Apois, vou deixar muito de comer cuscuz e tomar café adoçado. E o riso. Ainda largo, ainda preenchendo tudo.

Mas uma tristeza no fundo dos olhos. Cansaço da vida inteira na roça, vaqueiro, apicultor. Os menino tudo se criaram. Orgulhoso dos filhos que não seguiram seu caminho. Tudo trabalhando na rua. Os meninos, meus primos, com empregos na cidade. Eu, triste, de ninguém na família seguir mais aquele caminho. A roça morta, ninguém mais planta. Nem eu. E se perdeu na família a herança bonita do aboio, da sabedoria da terra e dos bichos. Nunca mais nenhum encantado nasceu na família.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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