Millôr e Chico: dois tipos de (bom) humor

Millôr Fernandes e Chico Anysio odiariam ouvir isso, mas com a morte deles o humor ficou mais pobre. Num mundo de celebridades instantâneas e de famosos como um tal Rafinha, que acha que fazer piada de mau caráter é fazer graça, é de se lamentar o esgotamento da vida para mentes tão brilhantes, que não produzirão mais seus tipos pinçados do cotidiano, suas frases cáusticas e seus pensamentos elucidativos. Apesar de continuarem sendo reproduzidos.

Como forma sublime de pensamento, o humor é livre, mas o limite da piada é o escrúpulo. Millôr e Chico eram geniais inclusive e, talvez, principalmente, por isso, porque sabiam ir até onde a corda podia esticar sem cair na vala comum do riso fácil, da baixaria. Eram céticos, mas com bom humor.

Profissionais multifacetados, que anteciparam pela variedade de expressões o que depois se conheceu como multimídia, eles temperavam com humor tudo ou quase tudo o que produziam, cada um ao seu modo. Millôr era mais intelectualizado, fazia um humor mais rebuscado e ferino, à George Bernard Shaw. Como disse Zuenir Ventura, “era, sobretudo, um pensador, que usava o humor para expressar suas idéias”. Enquanto Chico era mais popularesco, um criador de tipos com visão aguçadíssima para enxergar e garimpar no meio do povo aquilo que servia de crítica aos (maus) modos da sociedade e fazia rir.

Millôr Fernandes era isso:
“Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”;
“A diferença entre a galinha e o político é que o político cacareja e não bota o ovo”;
“Livrai-me da justiça, que dos malfeitores me livro eu!”;
“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem”;
“Chama-se de herói o cara que não teve tempo de fugir”;
“Todo homem nasce original e morre plágio”.
E Chico Anysio, isso:
“No Brasil de hoje, os cidadãos têm medo do futuro. Os políticos têm medo do passado”;
“As mulheres estão descobrindo que mulher é bom e isso é uma coisa que os homens já sabem há séculos”;
“Quem é casado há quarenta anos com dona Maria não entende de casamento, entende de dona Maria. De casamento entendo eu, que tive seis”.

Millôr Fernandes

Apesar de acumular habilidades de um Da Vinci – chargista, ilustrador, jornalista, poeta, escritor, dramaturgo, tradutor (dizem que falava 11 línguas), roteirista e até inventor do frescobol, entre outras artes, o autodidata Millôr impressionava mais pelo senso crítico e pela boca suja. Também dizem que adorava um palavrão.
Filho de espanhóis nascido no bairro carioca do Méier em 16 de agosto de 1923, Millôr Viola Fernandes teve a sorte de não se tornar Milton graças à caligrafia duvidosa do escrivão que lavrou a certidão de nascimento, transformando o “t” num segundo “l”, o traço virando um circunflexo e o “n” incompleto resultando num “r”.

Começou a desenhar lendo histórias em quadrinhos, especialmente Flash Gordon, e aos 14 anos já estava empregado na revista O Cruzeiro. Desenhou, escreveu poesias, contos, peças de teatro, passou por diversos veículos impressos até chegar, em 1969, a ser um dos fundadores de O Pasquim, certamente o jornal alternativo mais importante e influente que este país já teve.

Estava lá, na trincheira da oposição ao regime militar e rompendo tabus comportamentais, ao lado de outros “heróis da resistência”: os fundadores Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, além de Ziraldo, Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Ruy Castro e Fausto Wolff.

“A maior contribuição que foi dada à imprensa brasileira, nos últimos tempos, foi a imprensa opcional a partir do Pasquim, não tenho dúvida nenhuma. Mas a própria abertura forçou um pouco o recesso no setor. A própria abertura trouxe junto muita vigarice, os caras estão explorando demais o sexo, estão explorando o homossexualismo, o sensacionalismo: pegando os vícios da outra imprensa. A coisa essencial é ‘vender’. Mas continuo achando que a imprensa opcional é uma solução. Bem feita, essa imprensa opcional forçará a grande imprensa a dar cobertura a certos assuntos”, afirmou, num depoimento que depois virou o livro “A Entrevista”, do início da década de 80.

Millôr traduziu, do inglês e do francês, várias obras, principalmente peças de teatro, entre estas, clássicos de Sófocles, Shakespeare, Molière, Brecht e Tennessee Williams. Depois de colaborar com os principais jornais brasileiros, retornou à Veja em setembro de 2004, deixando-a em 2009 porque seus antigos textos estavam sendo publicados sem sua autorização no acervo on-line da revista.

Luiz Fernando Veríssimo recorda do amigo morto na última quinta-feira, 29, aos 88 anos, como grande intelectual e livre pensador. “Ele soube pensar o Brasil, tinha posições sempre claras e corajosas. Acho que, pelo fato de ser rotulado como humorista, talvez muita gente não tenha prestado atenção a esse seu outro lado. Millôr sempre contava uma história, que não sei dizer se é verdadeira ou falsa, de que um general teria dito a ele: 'Ah, então você é o Millôr Fernandes? Então faça uma piada'. Daí, ele respondeu: 'E o senhor é general? Então dê um tiro de canhão'. Esse conto diz muito sobre quem ele era."

“Mais que um prolífico e incansável criador de anedotas curiosas e precisas, Millôr foi também um grande pensador popular, um atento observador e comentarista do cotidiano. A pessoa mais inteligente que conheci na vida. O único e melhor filósofo brasileiro”, disse Ziraldo, triste pela morte dos dois. "Quem teve a maior perda em uma semana fui eu. Primeiro o Chico e agora o Millôr. Amava muito o Chico e o Millôr era uma dos meus melhores amigos. Conheci o Millôr quando tinha 10 anos de idade".

"Alguns dias atrás, morreu o Chico Anysio. Agora, o Millôr. É perda demais. O país perdeu um pouco de sua graça. O Chico era um criador incrível de tipos, e o Millôr era um criador incrível de palavras, de pensamento. Poucos exploraram o potencial semântico das palavras como ele”, disse Zuenir Ventura.

Chico Anysio

Uma missa pelo sétimo dia da morte de Chico Anysio foi realizada neste sábado na Igreja de São Francisco de Assis, no bairro do Rio Comprido, zona norte do Rio, e, após a cerimônia, a mulher Malga di Paula e os filhos do ator seguiram de helicóptero até o Projac, o centro de produções da Globo, para jogar metade de suas cinzas, realizando um desejo expresso pelo artista em seu testamento. A outra parte das cinzas será espalhada pela cidade em que o humorista nasceu, Maranguape (CE).

Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho, o Chico Anysio nasceu no dia 12 de abril de 1931 e foi humorista, ator, dublador, escritor, compositor e pintor, notabilizando-se por seus inúmeros quadros e programas humorísticos na Rede Globo, emissora onde trabalhou por mais de 40 anos.

Chico Anysio mudou-se com sua família para o Rio de Janeiro quando tinha seis anos de idade. Por acaso, foi fazer um teste para locutor de rádio quando a sua irmã Lupe Gigliotti também faria. Saiu-se bem no teste, ficando em segundo lugar, somente atrás de outro jovem iniciante, ninguém menos que Silvio Santos.

Ao dirigir e atuar ao lado de grandes nomes do humor brasileiro no rádio e na televisão, como Paulo Gracindo, Grande Otelo, Costinha, Walter D'Ávila, Jô Soares, Renato Corte Real, Agildo Ribeiro, Ivon Curi, José Vasconcellos e muitos outros, tornou-se um dos mais famosos, criativos e respeitados humoristas da história do país.

Mas era, acima de tudo, um contador de histórias. “O que me levou a esta atividade foi o fato de gostar de contar histórias, pois antes de tudo, o que eu faço de melhor é exatamente contar uma história”, disse, certa vez. Contando histórias, criou mais de 200 personagens, a maioria dos quais ele mesmo interpretava, tais como o Professor Raimundo, Nazareno, Bozó, Alberto Roberto, Salomé, Pantaleão, Seu Popó e Azambuja.

Ele se dizia ateu, mas em abril de 2010, após a sua internação em um hospital, a primeira de uma sequência, Malga di Paula, sua mulher, disse que Chico estava agradecendo as orações de fãs. O humorista teria dito que isso é “o melhor remédio que existe na vida”. Chegou-se então a questionar o ateísmo de Chico e a mulher nunca confirmou que a doença teria feito o seu marido voltar a acreditar em Deus. Mas o artista morto no último dia 23, aos 80 anos, teria logo se corrigido: "O que me mantém vivo é o trabalho".

Ao que Millôr teria dito: O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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