Por onde andam meus pés |
A estrada de novo. Anda-se porque há estradas e é possível percorrê-las, apenas. O On The Road na mão é só um amuleto: não preciso mais lê-lo para lembrar de cada uma de suas frases. There was nowhere to go, but everywhere. Arrumar a mochila é sempre uma espécie de ritual, passar a vida a limpo: cabe a minha vida toda em 45 litros de espaço? Reduzir-se ao essencial. E carregar tudo isso às costas, 2 mil metros acima ou 10 mil km à frente.
Caminhar sempre, para tentar encontrar-se ao final da jornada, numa esquina qualquer de Montevidéu, ou no alto do Monte Roraima. A caminhada é sempre por dentro, ainda que seja por várias cidades ou países. É sempre ao encontro de mim que vou – nunca fuga, sempre busca e encontro.
Buscar as respostas de tantas perguntas na aridez plantada de baobás do oeste da grande Bahia; silenciar paranoias, loucuras e crescer cruzando o país de cabo a rabo num ônibus velho; reconhecer limites e encontrar-se no alto de tantas montanhas, no silêncio de uma solidão povoada voando de cidade em cidade de norte a sul; desiludir-se nas imensidões de plantações de soja no cerrado.
De repente, encontrar mais perguntas que respostas no leito do rio, nas ondas do mar, no fluir de tantas cachoeiras, na imensidão de lagoas azuis brotadas de chuvas em areias branquíssimas. Morrer um pouco na fumaça paulistana, no cinza dos prédios curitibanos, para renascer acolá, no meio do mato, numa chapada na Bahia, Goiás ou Mato Grosso.
Sentir-se estrangeira em meu próprio país e estar em casa numa comunidade indígena na Venezuela. Fazer amigos em cada pouso, levar e deixar saudades, encontrar amores que se demoram até a próxima estação, a próxima cidade, ou um pouco mais. Seguir adiante sem olhar para trás ou ir embora querendo ficar. Uma trilha sonora para cada ida. E para cada volta.
Perder roupas, deixar para trás uma bota que soltou a sola, esquecer pequenos objetos e umas quantas memórias em lugares que nunca saberei, deixar de lembrança aos companheiros de viagem um sem número de japas malas, livros, bobagenzinhas escritas num papel. E ganhar deles memórias, histórias e pequeninas coisas que nunca se esquecerão.
Passar por tantas rodoviárias e aeroportos e já não saber mais que cidade, que país, onde desço ou subo. Era aqui que tinha aquela doceria que vendia uma torta de limão deliciosa? Talvez tenha sido em Manaus, ou Florianópolis. Foi numa padaria de Santa Elena de Uiarén ou na av. Paulista? Uma igreja em Ouro Preto ou em Salvador. Era uma cidadezinha do interior da Bahia ou Sergipe ou Pernambuco ou Minas, já não se sabe. Uma carona com um paulista que largou a velha vida e resolveu conhecer as agrovilas ao redor do mundo, com duas senhoras americanas hippies ou uma brasiliense apressada e engraçada. Dar conselhos num avião de volta pra casa ou num ônibus que já não lembro pra onde me levava.
Numa cidade imensa como São Paulo, de repente, ouvir uma voz conhecida, quase esquecida, gritar meu nome. Um inusitado encontro num aeroporto quase impossível, retornos divididos com amigos em voos quase desesperados. Mas também uma despedida plena de amor numa minúscula rodoviária do interior da Bahia ou numa avenida movimentada de Curitiba. Um até logo ou um até nunca mais em São Paulo.
Tudo, tudo isso e um pouco mais, cabe no mágico espaço de uma mochila caminhante.
Partir é sempre correr o risco de nunca mais voltar, encontrar pouso e motivo para ficar. Ou, por outro lado, morrer de saudades e ter mil motivos pra voltar. Rolar pedras, asfalto e poeira. E enquanto espera um voo que nunca vem, escrever algumas bobagenzinhas.