Moreno escuro é seu passado!

                                                                                          Marcos Cardoso

 

Não adianta negar, o brasileiro é racista e quando não suja de primeira acaba se entregando na segunda impressão. Racismo aqui significa preconceito contra o negro em primeiro lugar, embora quase sempre mal disfarçado. E muitas vezes confundido com o soberbo preconceito contra o pobre. É verdade que o nosso maior representante no esporte é um negro, muitos dos nossos ídolos na música têm um pezinho na África e até já vemos atores negros protagonizando as novelas nos papéis de galãs. Temos até um ilustre negro na mais alta corte de justiça, mas nem o homenageado com o galardão é poupado de referências nada civilizadas e cidadãs.

O tal ministro, Joaquim Barbosa, um jurista reconhecidamente preparado que o ex-presidente Lula nomeou para o Supremo Tribunal Federal, primeiro negro a galgar o importante patamar tradicionalmente reservado à elite branca, acaba de ser identificado como o “moreno escuro do Supremo”. E quem regurgitou a descortesia não foi o branquelo da esquina, mas um ex-governador, o atual deputado federal Júlio Campos, do DEM do Mato Grosso. Segundo ele, não foi por mal, apenas esqueceu o nome do dito cujo magistrado.

A descortesia do cuiabano aconteceu logo depois da visita – tão carregada de simbolismo – do presidente Barack Obama, aquele moreno escuro dos isteites. Mas os colegas de bancada trataram logo de botar panos quentes, afirmando que não houve maldade, que a expressão não pode ser lida fora de contexto e que é até uma referência simpática lá nas bandas da capital do Mato Grosso. Vamos então contextualizar.

Em reunião da bancada do partido na Câmara, ao criticar a eficácia do foro privilegiado e defender a manutenção de prisão especial para autoridades, Julio Campos cometeu a simpatia de assim se referir ao ministro do STF: “Todo mundo sabe que essa história de foro privilegiado não dá em nada. E depois, meus amigos, você cai nas mãos daquele moreno escuro lá no Supremo, aí já viu”. Pois é, já pensou cair nas mãos daquele negro? Por via das dúvidas, o deputado, do mesmo partido de um ex-governador negro de Sergipe, tratou logo de mandar uma cartinha com pedido de desculpas.

É sempre assim, açoita-se até correr sangue, mas não foi por mal, foi um corretivo, uma medida educativa, foi porque ele merecia. No Brasil, os negros sempre mereceram apanhar. Quando não merecem ser mortos.

Neste belo e miscigenado país tropical livre de tragédias naturais, 50 mil pessoas morrem vítimas de assassinato todos os anos. Mas os brancos têm morrido menos e os negros morrem em proporção cada vez maior. E a diferença só faz aumenta. Em 2002, foram assassinados 46% mais negros do que brancos. Em 2008, a porcentagem atingiu 103%. Ou seja, para cada três mortos, dois tinham a pele moreno-escura. Os números são do Mapa da Violência 2011, realizado pelo Instituto Sangari e Ministério da Justiça.

De acordo com o levantamento, entre 2002 e 2008, o número de vítimas brancas caiu de 18.852 para 14.650, o que representa uma significativa diferença negativa, da ordem de 22,3%. Já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou de 26.915 para 32.349, o que equivale a um crescimento de 20,2%. Em algumas unidades da federação, os números lembram extermínio: na Paraíba, sabe-se lá porque, são mortos 1.083% mais negros do que brancos. Em Alagoas, 974% mais. E na Bahia, os assassinatos de negros superam em 439,8% os de brancos.

Em Sergipe, em 2008 foram mortos 417 negros, contra “apenas” 78 brancos – índice de vitimização negra de 135%. Dado para se lamentar ainda mais: oito dos nove estados nordestinos estão entre as 12 unidades da Federação onde é maior a proporção entre os assassinatos de negros e brancos jovens, de até 24 anos. Nessa faixa de idade, aqui morrem 249% mais negros do que brancos.

O coordenador do estudo, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, levanta duas hipóteses para o caso da mortandade dos negros mais especificamente. A primeira delas é que acontece  com a segurança o mesmo ocorrido com a educação e a saúde: a privatização. Assim como quem possui condições financeiras vai a escolas particulares, tem plano de saúde e por isso acesso a melhores hospitais, também se protege melhor do crime quem tem mais dinheiro. As guaritas, grades, carros blindados, os filhos com celular e os seguranças privados (em geral policiais fazendo bicos) protegem da violência as classes sociais mais altas e mais brancas.

A outra razão é de responsabilidade direta do poder público. “Tudo indica que as políticas que estamos desenvolvendo desde 2002 no setor de segurança, em muitos estados, se dirigem fundamentalmente aos setores mais abastados da sociedade”, critica o sociólogo. “Se a maioria dos negros é pobre, é óbvio que não serão beneficiados.” É visível que o policiamento é sempre mais atuante e eficaz nos bairros onde moram os mais ricos.

O problema no Brasil não parece ser a escassez de investimentos, mas a sua aplicação. Os investimentos historicamente ficaram concentrados nas capitais e regiões metropolitanas. Com o crescimento das cidades do interior, os índices de violência aumentaram ali porque os municípios não estavam preparados para o problema.

Se junta à “natural” violência maior entre os pobres a ocorrência da violência policial, de que também são vítimas os negros. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) confirmou que a proporção de pretos e pardos mortos pela polícia é maior do que na população em geral.

Para a socióloga Luiza Bairros, ministra da Igualdade Racial, o problema começa na forma como os policiais são treinados para enxergar o negro. “A imagem utilizada para compor o criminoso é calcada na pessoa negra, mais especificamente no homem negro. O negro foi caracterizado como perigoso em estudos de criminologia e o lugar onde ele mora é visto como suspeito. É automaticamente enquadrado nas três possibilidades de construção da suspeição: lugar, características físicas e atitude. Ou seja, como o racismo institucional existe, acaba moldando o comportamento de boa parte da corporação.”

Como diria Mussum, preto é seu passado!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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