Morre o último dos Gigantes.

Considerado um dos últimos gigantes da era de ouro da literatura americana ao lado de Norman Mailer e Truman Capote, faleceu nesta terça-feira, 31 de agosto, aos 86 anos, o escritor Gore Vidal.

Filho único de uma atriz, Nina Vidal, com Eugene Luther Gore, um militar e pioneiro da aviação americana, Eugene Luther Gore Vidal nasceu em 3 de outubro de 1925 na Academia Militar de West Point, e criou-se em Washington, onde seu pai fora colaborador do governo Franklin Roosevelt, e seu avô, Thomas Pryor Gore, senador por Oklahoma entre 1907 e 1921 e de 1931 a 1937.

Romancista, ensaísta, roteirista de cinema e de teatro, Gore Vidal deixa uma vasta obra em sucesso variado.

Se nos restringirmos aos títulos traduzidos para o português, num passeio amplo, do ficcional ao real, memória e versão de uma época de muitas mentiras e meias verdades, Vidal se pontua como um crítico mordaz do imperialismo americano, sobretudo do ex-presidente George Bush a quem culpava pelos ataques de 11 de setembro, chegando inclusive a insinuar-lhe um acordo com a Al Qaeda e o próprio Bin Laden, para o bombardeio das Torres Gêmeas.

Alguns livros de Gore Vidal publicados no Brasil.

No Brasil Gore Vidal publicou os seguintes títulos:

01 – Juliano (Rocco)
02 – Duluth (Rocco)
03 – De Fato e de Ficção (Companhia das Letras)
04 – Como Faço o que Faço e Talvez Inclusive o Porquê (Companhia das Letras)
05 – Hollywood (Rocco)
06 – Império (Rocco)
07 – Ao Vivo do Calvário (Rocco)
08 – Washington, D.C. (Rocco)
09 – Palimpsesto (Rocco)
10 – 1876 (Rocco)
11 – Fundação Smithsonian (Rocco)
12 – Burr (Rocco)
13 – Kalki (Rocco)
14 – Verde Escuro, Vermelho Vivo (Record)
15 – A Era Dourada (Rocco)
16 – Sonhando a Guerra (Nova Fronteira)
17 – Williwaw (Ediouro)
18 – Criação (Nova Fronteira)
19 – Sede do Mal (Jose Olympio)
20 – O Julgamento de Páris (Record)
21 – Um Momento de Louros Verdes (Rocco)
22 – Myron (Rocco)
23 – A Procura do Rei (Rocco)
24 – Lincoln (Rocco)

Poucos autores têm uma obra tão fascinante a suscitar reações e indignações como Gore Vidal.

No livro “Juliano”, por exemplo, ao dar voz ao controverso imperador romano Flavius Claudius Julianus, que num reinado curto de três anos, tentara sem sucesso restaurar o paganismo greco-romano para deter o avanço do Cristianismo após Constantino, Gore suscitou grande reação das Igrejas, sobretudo da Religião Católica.

“Juliano” se faz convincente na discussão paganismo-cristianismo, sobretudo porque nos tempos recentes ninguém mais teme discutir o sacro, nem se inibe no descrer, ou crer menos ainda no que seja santo, no milagre, muito menos na imposição por dogma.

Do mesmo modo e com mesma ênfase é o volumoso livro “Criação”, onde o ensaísta percorre o vasto estuário religioso na busca de respostas consistentes, senão da cosmogonia universal, pelo menos da criação do mundo perante os anseios e questionamentos, a suscitar dúvidas e requerer melhores explicações.

A título de frustração pessoal informo que se eu ainda possuo um exemplar de “Juliano”, o mesmo não posso dizer de “Criação”, porque o emprestei a alguém e sumiu, só para validar a quadrinha da minha infância que tanto me habituara a escrever nos livros de meu apreço: “É sempre sorte mesquinha / de todo livro emprestado / ou fica por lá toda vida / ou volta todo rasgado”.

Quanto aos romances históricos, destaco aquele dedicado à Guerra da Secessão, intitulado “Lincoln”, talvez o primeiro de uma sequência continuada em “1876”, “Império”, “Hollywood”, compreendendo um período da História Americana, desde a Guerra contra o México à primeira metade do século XX, sem falar que posteriormente, tal discussão volta à própria independência americana em “Washington D.C.”, às concepções unionistas distintas segundo o pensamento de Thomas Jefferson e Alexandre Hamilton, que se ampliam em “Burr”, com a conquista de Califórnia e Texas, os feitos de Aaron Burr, primeiro Vice-Presidente, cuja carreira sofreu interrupção ascendente por duelar e matar o próprio Alexandre Hamilton, considerado hoje o responsável pela grandeza americana, tão invejada, quão combatida e imitada.

Nestes romances históricos, Vidal insere personagens fictícios em interlocução com aqueles que no cenário atuavam o papel mais destacado. Assim fica difícil separar o verdadeiro e o ficcional, num trabalho notável de reconstituição de feitos, sem falar do enovelo da ação entremeado por angústias, sonhos e desejos, tão comuns no desenvolver comezinho da vida, a prender o leitor, como fora uma estória de desfecho desconhecido ou não de todo esperado.

Há de se acrescentar ainda, que sendo Gore Vidal um crítico do pensamento imperial estadunidense, sua obra ficcional ou ensaística não tem agradado o conjunto dos “falcões” americanos, sendo um liberal mais afinado com o pensar dos setores mais à esquerda do Partido Democrático, chegando inclusive a verberar acusações que seriam terríveis se fossem verdadeiras.

Uma destas formulações conspiratórias diz respeito ao ataque de Peal Harbor pelos japoneses, que segundo Gore, fora algo desejado e até estimulado pelo Presidente Democrata Franklin Roosevelt, de modo a apressar a entrada dos Estados Unidos na 2ª Grande Guerra e a consequente mobilização frente à crise econômica ocorrida a partir da Quebra da Bolsa de New York.

Em tempos mais recentes, Gore Vidal foi um crítico mordaz de George W. Bush, acusando-o inclusive de violar a constituição americana, afinal sua eleição fora fraudada, quando Al Gore, primo do próprio Vidal, apesar de ter recebido um maior número de sufrágios, tivera anulada a sua eleição por um golpe da Corte Suprema da Flórida.

Gore Vidal sempre foi um polemista, alguém a suscitar amor e ódio.

Em “Como Faço o Que Faço e Talvez Inclusive Porquê” e outros ensaios, Vidal ataca o americano pela sua inapetência para a leitura, além de firmar condutas senão condenáveis, desmitificando aqueles que fizeram fortuna e nadavam em dinheiro.

De Howard Hughes, o excêntrico milionário, recentemente interpretado por Leonard de Caprio em ”O Aviador”, assim se referiu como “um chato”, e mais: “quanto mais dinheiro um americano acumula, menos interessante se torna”, e a melhor coisa que fizera foi o “seu afastamento do mundo”, só para lembrar que Hughes, por loucura, retirou-se do mundo por medo de contaminação de germes.

Entre Howard Hughes e John D Rockefeller, prefere o último por “distribuir alguns centavos e beber leite materno (isto é leite da mãe dos outros)”.

De Abraham Lincoln, Gore assim conclui num ensaio polêmico: “Nada do que Shakespeare inventou é comparável à invenção de Lincoln de si mesmo e, no processo, de todos nós. O que a Guerra de Tróia foi para os gregos, a Guerra civil foi para nós. O que o ardiloso Ulisses foi para os gregos, o ardiloso Lincoln é para nós. – não um santo de gesso, mas um grande gênio, o recriador da nossa nação, perseguido e perseguidor”.

Confidente de Tenessee Williams, Albert Camus, Sartre, Anaïs Nin, William Faulkner, Allen Ginsberg, Jean Genet, Norman Mailer era, contudo grande inimigo de Truman Capote o escritor de À Sangue Frio.

Por pertencer a uma família próxima à Casa Branca, Gore fora amigo de Eleanor Roosevelt, a princesa Margaret, John Kennedy, cuja esposa Jacqueline Kennedy Onassis era uma espécie de meia irmã, de criação próxima, a suscitar insinuações que nunca poderiam ser incestuosas se verdadeiras. Gore, filho de Nina Vidal, tivera um padrasto chamado Hugh Auchinclos, que seria também padrasto de Jackie. Ou seja: Gore e Jackie tiveram o mesmo padrasto e mães diferentes, convivendo, portanto, desde a infância, e ambos em algum tempo, dormiram no mesmo quarto, nunca juntos, mas em tempos diferentes.

No contexto familiar Gore Vidal detestava a mãe. Nina era uma “alcoólatra”, dizia.   Já do pai, Eugene Vidal, louvava-o como um atleta destacado em futebol e equitação, tendo ingressado na Academia de West Point, um pioneiro da aviação que foi membro do Governo Franklin Roosevelt, amigo de Charles Lindberg e Amélia Earhart, os primeiros a cruzar o Atlântico via aérea, tendo ajudado a criar três companhias de aviões comercias; TWA, Eastern e Northeast.

Todavia sua maior inspiração foi o avô que o criara, Thomas P. Gore, um senador cego de Oklahoma para quem o escritor lia assiduamente, adquirindo gosto pela literatura, desde criança, e também certa vontade de ingressar na política, tentada por duas vezes, mas derrotado para a Câmara Federal e para o Senado.

Quanto à carreira literária, já aos 19 anos de idade, se destacara com a publicação do romance de guerra “Williwaw”, baseado no tempo em que estivera no serviço militar no Alasca. Primeiro romance escrito sobre a Segunda Guerra Mundial, este foi o seu primeiro sucesso.

Anos depois, em 1948, um novo romance, “A Cidade e o Pilar”, gerou grande escândalo pela sua apresentação apaixonada do homossexualismo.
O primeiro romance gay americano era dedicado a um misterioso "J. T.", que depois foi identificado como sua paixão eterna desde a juventude, James "Jimmy" Trimble III, morto em combate na batalha de Iwo Jima, no dia 1 de março de 1945.

Por causa das escabrosas louvações às relações homo afetivas em “A Cidade e o Pilar”, Gore Vidal passou a sofrer restrições da imprensa, em particular de The New York Times, sendo-lhes proibidas quaisquer resenhas de suas obras. Aconteceu, porém, o acréscimo de sua popularidade.

Por necessidade de um dinheiro mais rápido que a literatura não lhe concedia, Vidal escreveu peças teatrais, roteiros e adaptações para o cinema, destaque-se para The Scapegoat (1959) (O Bode Expiatório) com Alec Guiness e Bette Dave, Suddenly, Last Summer (1959), de Joseph L. Mankiewicz, com Elizabeth Taylor, Katharine Hepburn e Montgomery Clift, adaptação da peça de Tennessee Williams, o épico Ben-Hur (1959), de William Wyler com Charlton Heston e Stephen Boyd e outros títulos.

De Ben-Hur dirá muitos anos depois: Charleston Heston se espantaria se soubesse que a cena da lança de Bem-Hur atingindo aquela do tribuno Messala tinha sido imaginada por mim com a intenção homossexual.

Homossexual assumido, Gore Vidal viveu com Howard Austen, seu companheiro por 56 anos, falecido em 2003.

Muita coisa poderia se dizer deste poliédrico intelectual americano.

Quando lhe perguntaram qual obra de sua lavra recomendava ao leitor americano, Gore Vidal respondeu: Nenhuma. Que leiam o alfabeto!

Colho na internet, no Estado de São Paulo em matéria de Sérgio Augusto, uma entrevista de Gore Vidal em sua passagem pelo Brasil em 1987, dizendo ter gostado de feijoada, caipirinha e do Pão de Açúcar, mais do que o Corcovado. Melhor seria trocar a imagem de Cristo pela de Buda. “Uma imagem de Buda traz mais sorte”, como diferença entre o sucesso das economias japonesas frente àquela dos países onde o cristianismo triunfou. Ou seja: Gore Vidal era um abusado provocador!

Provocação maior porém, foi aquela transcrita numa sua entrevista à Folha de São Paulo em 2007, quando lhe perguntaram sobre o que achava do Brasil: “Como o malicioso general De Gaulle uma vez disse, o Brasil é a grande nação do futuro, e sempre será”.

De De Gaulle conhecemos outra frase, a de não ser o Brasil um país sério.

Quanto ao Brasil como País do Futuro, a opinião é tema de Stephan Zveig, o austríaco que viera suicidar na paradisíaca terra de Santa Cruz. Um erro de Gore Vidal, por citação equivocada, e do próprio De Gaulle se pensou assim, afinal a sua França é que não mais reedita tanta glória.

Polêmicas à parte, perde a literatura americana com a morte de Gore Vidal.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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