“Mr. Makado, drink water!”

O grito saiu guinchado: “Mr. Makado, drink water!”

Era Raja Gonthan o nosso guia indiano, que mais esganiçado que nunca, gritava em apreensão e medo: “Drink water! Drink water, Mr. Makado!”

Ora, Mr. Makado não era outro. Era eu mesmo, Mr. Machado, com o dígrafo ch pronunciado como k.

Eu estava a cometer um erro terrível, uma atitude horrível, impensável, com os pés atolados nas águas sagradas de um regato preguiçoso que escoava de um templo Sikh, sem saber o que estava acontecendo.

Que fora danado! Eu lavava os pés num córrego sagrado e não sabia. Uma verdadeira heresia, uma afronta indesculpável, daí o grito de Raja, o nosso guia, que por ser Hindu, era também um crente diferente naquele templo.

Quanto ao córrego, por sua aparência tosca, não me permitia imaginar uma fama sacra e milagrosa. Pareceu-me até não tão limpo, mesmo porque nunca são higiênicos tais locais, tocados, beijados e utilizados por doentes e fanáticos, em busca da cura, da bênção e da purificação.

Mas, eu estava cometendo, senão uma afronta, uma heresia ou um pecado sem perdão. O meu agir desatencioso conflitava com o respeito que todos devem ter, enquanto seres tolerantes e abertos a todas as crenças, e que eu, em particular e por obrigação, devia possuir enquanto visitante naquele ambiente de fé e oração.

Mas, que fora! Que chato! Ser flagrado num erro tolo e involuntário, ainda hoje não esquecido por mim, dezessete anos passados, em arrependimento e raiva.

Porque, entendo como premissa notável do pensamento laico ocidental, que impõe a liberdade completa de crença e até de descrença, esta proclamação geral de humildade, afinal é no respeito à fé do outro, que reside a melhor convivência; por tolerância.

Tolerância, que não quer dizer conformismo, acomodação, excesso de inércia, indiferença em demasia.

Não! Se os homens se tolerassem uns aos outros, a coexistência seria sempre possível e o amor deixaria de ser uma quimera santificante, para ser uma realidade consequente.

Mas o meu ato, enfiando os pés no veio d’água era de uma ignorância inconsequente, imperdoável. Algo que bem poderia suscitar um problema de derivação funesta, igual às recentes notícias de Pendjab, no Paquistão, onde uma lavradora cristã, Asia Bibi, aguarda por seu enforcamento, em crime, senão análogo, parecido.

Asia Bibi, aguaradando a morte por enforcamento – LeMonde.

Ora, o que é sagrado para alguns, não o é para outros. E uma coisa tão simples como esta, ainda é motivo para discórdias, incompreensões, exacerbação de ódios.

Não fora assim, os ataques terroristas e os suicidas assassinos não existiriam, com seus atos impossíveis de concepção à luz da racionalidade.

Se temos tanta coisa a nos unir, por que teimamos em nos dividir e separar, portando bandeiras e cores, com emblemas tão vazios, discutindo em agressão mútua, e sofrimentos indesejados?

Pois bem, Asia Bibi está acusada e condenada por blasfêmia. O mesmo crime que levou a humanidade a erigir fogueiras e incinerar os que lhe pareciam diferentes, aqui e alhures, conduzindo pogroms e violação de cristais, matanças de São Bartolomeu, de modo a punir não só os que ousassem refletir em porfia divergente, como os que por amorfia, hesitassem perante um pensar convergente.

Assim, em feito semelhante ao discutir diferente, eis Asia Bibi, uma mãe de família humilde, camponesa pobre, despertando a compreensão e agasalhamento mundo afora, porquanto o seu crime de blasfêmia já nos parecia démodé e ultrapassado, expurgado da legislação por obtuso, e banido dos dicionários por desuso.

Entretanto, lá no Pendjab, a minoria cristã só é bem aceita pela expressivo universo muçulmano, se o batizado reconhecer-se menor perante os discípulos do profeta, pertencente a uma cidadania de segunda classificação, sempre a exibir-lhes submissão, em cabeça abaixada, de reverência e sujeição.

Ora, permitir ou exigir tal rebaixamento é ensejar a discórdia, o abuso e a provocação. E foi o que aconteceu na aldeia de Ittan Wali, a 14 de junho de 1999, conforme relato da jornalista Anne-Isabelle Tollet no livro (Blasphème, de Asia Bibi e Anne-Isabelle Tollet, Oh! Editions, 192 p., 16,90 euros).

Livro de Asia Bibi e Anne-Isabelle Tolet: um pedido de socorro ao mundo. Le Monde

Entrevistada por Le Monde em 01.06.2011, Anne-Isabelle Tollet, resume a história: Asia Bibi cometera o erro irreparável de beber da água de um poço destinado aos muçulmanos.

Dito, porém assim, o resumo não seria tão banal.

Na verdade, tratava-se de uma sequência de ofensas mútuas entre vizinhos, um dolo agravante e deliberado, partido de uma querela comum e corriqueira.

E o começo aconteceu, quando uma búfala de Asia danificou a manjedoura de uma vizinha. Acusada de ter feito o dano propositalmente ou sem melhor cuidado, Asia respondeu que o animal lhe havia simplesmente escapado das mãos.

Ora, segundo a versão contada pela jornalista Anne-Isabelle Tollet, naquela região do Paquistão, o simples fato de um cristão responder a um muçulmano, já representa uma insolência, um ato mais que audacioso; chega a atingir as raias do insulto.

E, quando os insultos acontecem, tornam-se crescentes e incontrolados, enveredando por ofensas mútuas e incompreensões variadas.

É um passo à frente na incompreensão desembestada: “Pobre cadela, sabes que teu Jesus é um bastardo?” Eis a discussão agora enveredando pelo insulto perigoso.

Asia Bibi, talvez amenizando sua fala, afirma apenas ter dito: “Eu não quero me converter, eu tenho minha religião”.

Mas, sua resposta começa provocativamente a ofender: “Que fez o profeta de vocês para salvar os homens? Por que eu devo me converter e não vocês?”

E a coisa iria mais além; acusaram-na de falar corrigindo o profeta: “Eu penso que Jesus teria um ponto de vista diferente daquele de Maomé sobre a questão” da pureza desta água e deste poço.

Ora, em sequência de desafios tolos, Asia ousa beber da água do poço que lhe era proibido. Eis um crime perpetrado. O poço fora profanado pelo ósculo infiel. Uma falta de respeito, sem dúvida! Uma falta gravíssima de respeito aos discípulos do Profeta, que viam agora, tisnada e conspurcada, a limpidez de sua fonte.

Desnecessário dizer que era cabido um gesto de humildade, uma desculpa talvez, mas não uma recusa pura e simples, em menosprezo do sacro, por desprezo e desconsideração.

E ao beber do poço em desafio, Asia Bibi, suscitou o ódio e a acusação de blasfêmia, um crime de punição medonha.
Supérfluo dizer que uma revolta geral quase a linchou tragicamente.

Resgatada de seus acusadores, a inconveniente paquistanesa encontra-se custodiada desde aquela data, tendo já sido julgada, e condenada a morrer por enforcamento público.

Se a sentença ainda não foi executada, é porque, ali como aqui, correm os recursos e as petições.

Um julgamento de apelação corre na Alta Corte em Lahore, tentando abrandar a pena capital, transformá-la em prisão perpétua, talvez.

Tenta-se, em outro campo, reformar a lei, descriminalizar tal ato ou minimizar sua punição, mas o parlamento, por maioria, ainda resiste à moderação.

Enquanto tudo isso acontece, Bibi permanece custodiada, separada dos demais detentos, por segurança, isolada pela justiça paquistanesa que teme o seu assassinato, até por envenenamento, afinal alguns doutores mais radicais da lei corânica, liderados pelo Mulá de Peshawar, colocaram sua cabeça a prêmio de 50.000 Euros, uma bagatela de R$115.000,00, no barato.

Afora tudo isso e no contexto mais amplo, alguns defensores de Bibi já foram assassinados, sua família, esposo e cinco filhos, sofrem ameaças e privações, e o mundo tudo observa com tristeza tal barbárie.

E eu, retornando às minhas saudosas memórias em périplo pelo Decão, continuo a escutar o recorrente eco da voz esganiçada de Raja Gonthan; “Mr. Makado, drink water!”

Em que fria eu quase entrei!

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Dedico este texto ao Agrônomo Carlos França Melo de Morais, ao Geólogo Moacyr de Lins Wanderley, ao Administrador Josué Amâncio de Jesus e ao advogado Carlos Alberto Hora Santos, meus companheiros de Intercâmbio de Grupos de Estudos da Fundação Rotária de Rotary International na Índia, aos cuidados de Raja Gonthan, Surendra Singhvi, e dos demais rotarianos do Distrito 3160 daquele fascinante país.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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