Mudanças na conjuntura do “Fora Bolsonaro”?

Em texto publicado em setembro de 2020 (“Democracia, crise, presidencialismo e perda de mandato”), afirmamos: “[…] em meio à pandemia global do COVID-19 e da grave crise humanitária, econômica, social e política dela decorrente, também já se disseminou a percepção de que a postura negacionista e anticientífica com que o Governo Federal mais do que se omitir, boicotou e boicota a eficácia das necessárias medidas de prevenção e enfrentamento, também se disseminou a certeza de que a sua saída do Governo – por vias democráticas – é elemento fundamental para que consigamos minimizar os efeitos da crise e superar os obstáculos com a redução possível dos seus efeitos trágicos. Noutras palavras: sob a liderança de Jair Bolsonaro, improvável será superar toda a crise decorrente do coronavírus e todas as evidentes ameaças de ruptura institucional democrática.”.

Essa percepção se aguçou ainda mais, com a criminosa omissão do Governo Federal no enfrentamento ao COVID-19 (sob falsa alegação de que o STF o teria impedido de atuar) que se revelou dramaticamente na morosidade e inépcia no que se refere à política nacional de vacinação e na tragédia que o colapso da rede de saúde em Manaus (com mortes por asfixia decorrentes da falta de oxigênio nos hospitais) – com o Ministério da Saúde insistindo em propagar o “tratamento precoce” (de ineficácia comprovada) – prenúncio do que pode vir a acontecer em outros tantos lugares do país nessa severa segunda onda da pandemia.

No mesmo texto de setembro/2020, comentamos as possibilidades constitucionais e legítimas de que fosse derrubado o Governo Jair Bolsonaro: “A não ser que renunciasse ao seu mandato – o que não se imagina vá ocorrer, muito pelo contrário – só há três caminhos viabilizadores: 1 – perda do cargo decorrente de condenação, pelo Supremo Tribunal Federal, pela prática de crime comum; 2 – perda do cargo decorrente de condenação, pelo Senado Federal, pela prática de crime de responsabilidade; 3 – cassação da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político durante as eleições de 2018”.

E prosseguimos: “Embora sejam inúmeros e muito bem tipificados os crimes de responsabilidade praticados reiteradamente por Jair Bolsonaro e embora existam indícios consistentes de prática de crime comum, qualquer abertura de processo (seja por crime comum, seja por crime de responsabilidade) contra Presidente da República depende de prévia autorização da Câmara dos Deputados por decisão favorável de 2/3 dos votos”.

Mais ainda: “E é exatamente essa prerrogativa constitucional que faz com que seja improvável, ao menos nesse momento, qualquer abertura de processo contra o Presidente da República Jair Bolsonaro, seja por crime comum, seja por crime de responsabilidade, e isso parece decorrer de ao menos quatro fatores fundamentais: 1 – a composição política já antes mencionada do Presidente da República com o “centrão”, o que lhe assegura mais de 1/3 dos votos dos deputados federais e portanto impede que seja alcançado o quórum de 2/3 a favor dessa autorização; 2 – a satisfação resignada do poder econômico e da direita liberal, capazes de conviver sem maiores problemas com os arroubos autoritários e mesmo comportamentos indecorosos e declarações estapafúrdias envolvendo direitos de cidadania e costumes, desde que as medidas econômicas concentradoras de riqueza e socialmente regressivas para o mundo do trabalho permaneçam como vetor fundamental de atuação do Governo; 3 – o apoio que 30% da população brasileira dá ao Governo, segundo pesquisas; 4 – as dificuldades de mobilizações populares em prol da queda do governo em tempos de isolamento e distanciamento social necessário por causa da pandemia ainda descontrolada entre nós, isso a despeito das mobilizações antifascistas realizadas no mês de junho, puxadas sobretudo pelas torcidas de futebol antifascistas.”.

Pois bem: essa conjuntura, de setembro/2020, parece ter sofrido – literalmente sofrido – mudanças significativas, a partir de fatos que vêm se acumulando desde então, somados aos eventos mencionados no início deste texto.

Com efeito, na conjuntura de agora, janeiro/2021:

1- sinais de descontentamento popular com o Governo Federal e com a sua (não)atuação no enfrentamento à pandemia e seus efeitos foram detectados nos resultados das eleições municipais de novembro/2020, notadamente nos grandes centros urbanos;

2 – embora continue contando com o apoio político do “centrão”, dissidências e fricções começam a ser captados na base política e na base de apoio parlamentar do Governo, o que se reflete inclusive no incerto resultado das eleições para as Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e no Senado Federal (a se realizar em 01/02/2021) para o próximo biênio, com potenciais reflexos nas pautas de deliberações legislativas relevantes, inclusive eventual tramitação de processo de impeachment;

3 – após os eventos das vacinas e de Manaus, caíram os índices percentuais de avaliação positiva do governo para menos do que 30%, conforme pesquisas;

4 – primeiros significativos sinais de incômodo mais evidente da direita liberal e do poder econômico com a condução governamental desastrosa e mesmo criminosa do enfrentamento ao COVID-19, com avaliação de que pode redundar em prejuízos às suas próprias pautas  e seus próprios interesses em medidas econômicas concentradoras de riqueza e socialmente regressivas para o mundo do trabalho;

5 – primeiras iniciativas destinadas à instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar os desmandos governamentais no enfrentamento da pandemia e em particular nos episódios trágicos de Manaus;

6 – abertura de inquérito criminal, no Supremo Tribunal Federal, para investigar potenciais crimes praticados pelo Ministro da Saúde no episódio de Manaus;

7 – panelaços e carreatas (ao invés de passeatas, por causa das restrições sanitárias ligadas ao isolamento social) que começam a ocorrer – organizadamente ou por movimentos espontâneos – em todo o país, reivindicando o impeachment.

Conjunturas se transformam rapidamente e não temos como prever como será a evolução dos acontecimentos. Todavia, em comparação a setembro/2020, há indícios de que possa sim evoluir rumo ao impeachment de Jair Bolsonaro.

Mas o momento dramático da pandemia entre nós e esses episódios das falhas graves no plano nacional de imunização e da tragédia de Manaus também podem contribuir com mudança de conjuntura que leve a outro tipo de consequência.

Com efeito, no texto de setembro/2020, afirmamos, com resignação:

 

“Restaria, então, a via da cassação da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político durante as eleições de 2018. São vários os processos nesse sentido que lá tramitam, sendo o mais relevante aquele que aponta abuso de poder econômico no financiamento empresarial de impulsionamento massivo de mensagens instantâneas em aplicativos para disseminação de “fake news” eleitorais.

Essa via, no entanto, não é de fornecer muitas esperanças. Nos termos da lei, a configuração do ato como abusivo depende da gravidade das circunstâncias que o caracterizam, e esse sopesamento da gravidade da conduta em casos de abuso de poder nos processos eleitorais, notadamente quando envolve mandatários eleitos diretamente pelo povo, especialmente Presidente da República, tem sido efetuado com autocontenção pelo Tribunal Superior Eleitoral, em prestígio ao princípio democrático e à soberania popular demonstrada na votação.

Somente uma percepção mais acurada de provas realmente robustas e evidentes, acompanhada de despertar definitivo da sociedade e das instituições, pode levar a uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral condenatória da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão por abuso de poder econômico nas eleições de 2018, que leve à perda de seus mandatos.”

 

O “despertar definitivo da sociedade e das instituições” mencionado no texto de setembro/2020 também pode vir a ocorrer. É que se diante dos episódios mencionados no início deste texto (morosidade e inépcia no que se refere à política nacional de vacinação e a tragédia que o colapso da rede de saúde em Manaus revelou) esse despertar não ocorrer, será cada vez mais difícil imaginar que venha a ocorrer algum dia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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