Há manchas de sangue que se esparramam. Fundos de cérebro que se misturam ao cal das paredes. Munich de Steven Spielberg, em cartaz nos cinemas e indicado ao Oscar, é o homem. Em sua plenitude, crueldade – humanidade – por que não dizer. Você pode estar com o sono que for, morto de cansado, extremamente insuportável como pessoa, mas vai ser impossível fechar os olhos, em frente a este que é das obras do cinema uma raridade de sensibilidade, grandeza e genialidade de Steven. Talvez a sua obra mais ousada. Mais angustiante e conflitante. Não há efeitos especiais extraordinários, daqueles que só servem para maquiar a anti-arte. As bombas que explodem são bombas humanas. Graves porque mostra um racismo explícito.
Não se trata da Olimpíada de Munique, na Alemanha Ocidental, quando morreram 11 atletas da delegação Israelense, em 5 de setembro de 1972 – trata-se de como uma mulher como Golda Meir, Primeira-Ministra de Israel – e tantas outras mulheres do poder- podem ser tão terroristas, protegidas por um capital poderoso e aparatos militares extraordinários e matar em nome do sangue puro, em nome da pátria.
O filme não é anti-Israel, nem Pró-Palestina. O filme é a carne viva que somos todos nós, expostos às mais variadas formas de violência. Injustiças. Tragédias. No Brasil mesmo, onde política é compra de ovos da galinha de ouro, enquanto a miséria absoluta campeia. Chacinas de policiais em Duque de Caxias. Inocentes. E o comandante da operação Carandiru inocentado. Arre! O filme de Spielberg é um ratrato dos terrorismos que parecem comuns. A fotografia é magistral. A poesia evidente.
“A trama é montada toda ela em cima do personagem de nome Avner Kaufmann, interpretado pelo ator Eric Bana, que interpreta um agente do Mossad, cuja mulher espera o primeiro filho do casal recém casado. Ele é chamado à presença da Primeira Ministra, que elogia o pai dele e lhe confia uma “grande missão”. Os detalhes da operação dessa missão altamente secreta, lhes serão confiados por Ephraim (chefe do Mossad e interpretado no filme por Geofrey Rush). A sua vida mudaria profundamente. Ele seria demitido do serviço secreto ativo, mudaria de nome, se transferiria para Paris e chefiaria uma equipe de mais quatro agentes, sem nomes, sem passado e que não “existiriam” para efeitos legais. Receberiam dinheiro em caixas secretas e contas numeradas de bancos suíços, para as suas ações. Uma operação literalmente clandestina. Essa esquadrão acabou sendo chamado de Cesárea, ou como alguns o chamava na época de esquadrão Fúria de Deus (ou Ira de Deus). A operação não seria apenas uma vingança sobre atos passados, mas um alerta para que no futuro os palestinos não fizessem mais ataques desse tipo, cuja resposta seria imediata (de fato, isso inaugura os assassinatos seletivos que Ariel Sharon sistematicamente implementou na Palestina, quando executou dezenas de líderes da resistência).
O personagem principal vai vivendo, no desenrolar da ação, um conflito existencial, um drama pessoal, pois vai descobrindo, aos poucos, que os que ele estava executando, não eram os mentores e muitas vezes nada tinham a ver com o comando que executou o massacre da vila olímpica. Eram simplesmente execuções de líderes da resistência palestina e que muitas vezes comandaram outras operações contra o Estado de Israel. Vive o que Diwan vai chamar de divisão moral entre cumprimento do dever, da missão e remorso (esse assunto é contestado pelo autor do livro que contesta o filme, de Klein, que afirma não haver remorso algum entre os executores dos assassinatos seletivos).”
Estamos diante do olhar de Steven Spielberg. O filme é ele. Há uma cena que é subliminar. Um dos integrantes da missão diz que está exausto, que não tem mais condições de fazer parte da próxima ação. É a cena. O companheiro diz que ele precisa descansar e arremata: quando você se perder de você, não se preocupe, eu o acho. O filme é assim: lágrimas, lágrimas, lágrimas.
Mas o mais deslumbrante é que o mocinho não é herói. O herói não é mutilado. Não tem braços decepados, pernas amputadas, cicatrizes pela cara, aquelas cenas comuns para nos convencer que seremos sempre a mosca abatida na hora da sopa. Não! Spielberg é magistral. O herói é o herói ainda que na hora de transar com sua mulher, ele não saia da linha de ataque vendo aqueles cérebros na parede de cal.
Munick para Steven é uma prece à paz. Para quem inventou ET, nada importará. O filme é uma obra de arte. Um desvendar de mundos que ultrapassa Israel-Palestina-11 de setembro-. Eric Bana(aquele divino de Tróia), Geofrey Rusch, Daniel Craig e Mathieu Kassovitz por si só valeriam o filme.
A verdade é irrevelável. E quando pensamos tê-la, dissolve-se. Porque o nosso único desejo é quase sempre irrevelável. E inatingível. Munik é Spielberg puro. Uma viagem ao recôndito de nossas carnes vivas. Uma olimpíada de contatos imediatos de terceiro grau. É a vida na tentativa de que se você se perder de você eu te encontro. Mas nem sempre é assim.