Musiqualidade

R E S E N H A

Cantora: ELZA SOARES
CD: “A MULHER DO FIM DO MUNDO”
Selo: CIRCUS

Tudo na vida da cantora Elza Soares foi deferente e especial. Filha de lavadeira, ela, que nasceu e foi criada em favela, já aos doze anos se casou, tendo se tornado mãe no ano seguinte. Assim, desde cedo, viu na música o caminho para sair do mundo de dificuldades e foi participando do programa de calouros de Ary Barroso que terminou conseguindo a nota máxima e saindo do anonimato.
Famosa pela voz extensa e rouca e pela facilidade em sacodir de forma jazzística as canções que interpreta (durante a carreira, notabilizou-se por registrar inúmeros sambas com uma divisão única), Elza, na década de setenta, frequentou as colunas das revistas pelo tumultuado romance com o jogador Garrincha de quem teve um filho, precocemente falecido. Com seu estilo despachado e exagerado, ela conquistou plateias no Brasil e no mundo, passando temporadas nos Estados Unidos e na Europa. Em 2000, ganhou o prêmio de "Cantora do Milênio", conferido pela BBC de Londres e, de lá para cá, vem voltando a conquistar um merecido local de destaque no Brasil.
Após uma longa trajetória artística em que lançou diversos discos, fica até difícil de acreditar que ela nunca tenha gravado um álbum inteiramente composto por canções inéditas. Mas isso era fato até então, posto que acaba de chegar ao mercado, através do selo Circus, o CD “A Mulher do Fim do Mundo”. Concebido e dirigido pelo talentoso e competente Guilherme Kastrup, o disco se faz composto por onze faixas, dez delas assinadas por artistas paulistanos ora em emergência no mercado musical (a exceção é “Coração do Mar”, a faixa de abertura, cantada a capella, um poema de Oswald de Andrade musicado pelo conhecido Zé Miguel Wisnik).
Elza, parecendo desafiar o tempo, continua cantando muito bem. Embora o arranhar de voz, uma característica sua, tenha sido domado neste recém-lançado trabalho, a força interpretativa continua intacta. E é esse dom que a faz mergulhar de cabeça em temas atuais, grande parte deles bem impactantes. Assim, se a violência contra a mulher é oportuna e criativamente abordada em “Maria da Vila Matilde” (grande momento criativo de Douglas Germano), o pesadelo no vício do crack é o drama de um travesti, personagem que conduz os versos de “Benedita” (de Celso Sim – presente nos vocais, em participação especial -, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant).
Outro convidado é o cantor, compositor e guitarrista Rodrigo Campos que aparece na autoral “Firmeza?!”, canção formatada a partir de curtas gírias da atualidade. Rodrigo também é o autor de “O Canal”, um dos destaques de um repertório em que predominam sambas, ainda que não convencionais, mas que também se abre para várias outras vertentes, sensações e experiências com espírito roqueiro.
O tema morte é abordado em dois momentos: em “Comigo” (de Romulo Fróes e Alberto Tassinari) na qual Elza chora a ausência da mãe (sim, parece que as músicas foram compostas para ela!) e em “Dança” (outra de Romulo, agora em parceria com Cacá Machado) através da qual a cantora explicita o seu intento de continuar viva por muito tempo ainda. Esse movimento de perenidade alcança também “Mulher do Fim do Mundo” (mais uma de Romulo, desta feita criada ao lado de Alice Coutinho), desde já uma pérola atemporal que atinge o ápice quando Elza sentencia: “Me deixem cantar até o fim!”.
E se algumas intervenções sonoras constantes dos arranjos podem, aqui e ali, empanar a qualidade de algumas melodias, tais não são suficientes para macular as belezas inatas da contundente “Luz Vermelha” (de Kiko Dinucci e Clima), da erótica “Pra Fuder” (também de Kiko) e da delicada “Solto” (outra de Clima feita com Marcelo Cabral), três grandes momentos do set list apresentado.
Um CD realmente imperdível que ratifica a garra e a coragem dessa artista incomparável que é Elza Soares!

N O V I D A D E S

* “Tamarear” é o título do CD gravado por Milton Nascimento ao lado do Dudu Lima Trio (formado por este no contrabaixo, Ricardo Itaborahy ao piano e Leandro Scio na bateria e percussão) com o intuito de comemorar os trinta e cinco anos do Projeto Tamar que se faz voltado para a preservação das tartarugas. Composto por nove faixas, o disco chegou recentemente às lojas através de uma parceira entre a gravadora Som Livre e o selo MP,B, e é um trabalho indicado para apreciadores da boa música, mas não voltado para a execução em rádio, muito por conta das durações das faixas, em geral extensas, devido aos arranjos que, voltados para o jazz, abrem considerável espaço para solos instrumentais. Cantado quase que exclusivamente por Milton (em bom momento vocal) com adicionais interseções de Itaborahy, o álbum traz interessantes releituras para conhecidas canções como “Gran Circo”, “Travessia”, “Nada Será Como Antes” e “Fé Cega, Faca Amolada” (todas do repertório do mentor do Clube da Esquina), além de uma versão inspirada de “Meditação” (criada por Tom Jobim e Newton Mendonça). O aclamado guitarrista Stanley Jordan participa, como convidado especial, da inédita faixa-título (de autoria de Guy Marcovaldi) e do tema instrumental “Belafonte” (de Dudu Lima).

* João Donato realizou show em agosto próximo passado, no Bottle's Bar, no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, o qual, devidamente registrado, dará origem a um CD que integrará o lote inaugural de lançamentos do recém-aberto selo Beco das Garrafas Records. Quem viver ouvirá!

* Lançado de maneira independente, o CD “Tem Mineira no Samba” apresenta ao mercado fonográfico o talento da cantora Corina Magalhães. Dona de bonita voz e mostrando grande segurança técnica e interpretativa, ela, sob a produção musical do baixista Edu Malta (que também assina os arranjos), marca sua estreia com o pé direito, reunindo, num coeso repertório, sambas criados por Ary Barroso (“Morena Boca de Ouro”, “Camisa Amarela” e “Faceira”), João Bosco e Aldir Blanc (“Casa de Marimbondo”, “Pret-à-Porter de Tafetá” e “A Nível de”) e Geraldo Pereira (“Escurinho”, “Falsa Baiana” e “Sem Compromisso”, esta em  parceria com Nelson Trigueiro). De um período mais atual, somente foram selecionadas duas (ótimas) canções: “Galo e Cruzeiro” (de Vander Lee) e “Enfeitiçado” (de Affonsinho). Ainda que Corina pudesse se arriscar mais, vale muito a pena conhecer esse seu primeiro trabalho!

* A cantora e compositora Ana Carolina está prestes a realizar um novo show. Trata-se de um projeto de voz e violão que contará com intervenções eletrônicas (samplers e programações) a cargo do músico Mikael Mutti. O repertório aliará canções autorais com músicas de lavra alheia e, se tudo der certo, deverá sair, no próximo ano, um correspondente registro ao vivo em CD.

* Há tempos sem lançar um disco de inéditas, Roberto Carlos vem se garantindo, ano após ano, com projetos em que se aproveita de alguma oportunidade ou evento para regravar seus sucessos e relançá-los, em novo formato, às vésperas do Natal. Este ano não se fez diferente (só foi adiantado um pouco o lançamento) e acaba de chegar às lojas, nos formatos CD e DVD, “Primera Fila”, projeto que tem como objetivo a conquista imediata do mercado fonográfico latino formado pelos países de língua hispânica, daí porque sete das dezessete músicas do repertório surgem em versões gravadas em espanhol (dentre elas, estão: “Jesus Cristo”, “Lady Laura”, “Amigo” e “Amada Amante”). Em português, Roberto rebobina “Emoções”, “O Portão”, “Cama e Mesa” e “Detalhes”, entre outras. Há a participação do cantor mexicano Marco Antonio Solís em “Arrastra una Silla” e a inclusão, no repertório, de “And I Love Her” (de John Lennon e Paul MacCartney), muito por conta de o projeto ter sido gravado ao vivo durante apresentação no lendário Abbey Road Studios, em Londres, o qual se tornou eternamente associado à carreira dos Beatles.

* Alaíde Costa fecha o ano com o lançamento de dois discos: um deles (“Alegria É Guardada em Cofres, Catedrais”) foi gravado com Toninho Horta e tem o repertório calcado em composições dos integrantes do mineiro Clube da Esquina. Embora ainda difícil de ser encontrado, já se encontra disponível em algumas boas lojas do ramo. O outro é “Porcelana”, que chegará ao mercado até o final deste ano e foi dividido com Gonzaga Leal, talentoso cantor pernambucano. No repertório deste, canções assinadas por Alceu Valença, Capiba e João Cavalcanti.

* Uma das melhores cantoras da atualidade, Virgínia Rosa (que também é atriz, tendo participado recentemente da telenovela global “Babilônia”, fazendo o papel de mãe da personagem da protagonista Camila Pitanga) ainda merece ter o seu talento reconhecido por um público bem maior. Dona de poderosa voz, afinada ao extremo e com um belo timbre, ela está lançando, através do selo Sesc, o CD “Virgínia Rosa canta Clara”, um projeto gravado ao vivo em estúdio que foi feito para homenagear a saudosa Clara Nunes. Trata-se, desde já, de um dos melhores tributos feitos à “mineira, guerreira, filha de Ogum com Iansã”. Idealizado pela própria artista que contou com a direção de Fernando Cardoso e a produção do pianista Ogair Júnior, o álbum soa verdadeiro, ancorado em arranjos que privilegiam a percussão e instrumentos de cordas como violão, cavaquinho e bandolim. O repertório de quatorze faixas abarca logicamente temas bastante conhecidos, caso de “A Deusa dos Orixás” (de Romildo e Toninho), “Basta um Dia” (de Chico Buarque), “Juízo Final” (de Nelson Cavaquinho e Elcio Soares), “Feira de Mangaio” (de Sivuca e Glorinha Gadelha) e “Na Linha do Mar” (de Paulinho da Viola), mas sempre são jogadas novas e inspiradas luzes sobre eles. Há também releituras de canções menos conhecidas, a exemplo de “Iracema” (de Adoniran Barbosa), “Ai Quem me Dera” (de Toquinho e Vinicius de Moraes) e “Ninguém Tem que Achar Ruim” (de Ismael Silva) e um emocionante registro de piano e voz para “Um Ser de Luz” (música de João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, composta em homenagem a Clara logo após o seu precoce falecimento). Muito legal; portanto: corra e ouça!

* A versão cinematográfica de “O Grande Circo Místico”, que chegará às telonas em 2016, trará uma trilha sonora com gravações inéditas das músicas compostas por Edu Lobo e Chico Buarque para o balé estreado em 1983. A conferir!

RUBENS LISBOA é compositor e cantor.
Apresenta o programa "Musiqualidade", veiculado pela 104,9 Aperipê FM, todos os sábados das 13 às 15 horas.
Quaisquer críticas e/ou sugestões a este blog serão bem-vindas e poderão ser enviadas para o e-mail: rubens@infonet.com.br

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