Mutação constitucional de competência do Senado Federal?

Na semana passada, na sessão de 16/05/2013, o Supremo Tribunal Federal retomou a discussão de mais um tema relacionado ao desenvolvimento da jurisdição constitucional brasileira. Trata-se, agora, de colocar em cheque a eficácia inter partes da decisão definitiva em que o próprio STF declare, incidentalmente, a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

Pelo entendimento mais ortodoxo e já tradicional, só possuem eficácia contra todos, ou erga omnes, as decisões proferidas em sede de controle abstrato/concentrado de normas (ADI, ADC, ADPF), como atualmente resulta do próprio texto da Constituição (Art. 102, § 2º) e das Leis nº 9.868/99 (Art. 28, parágrafo único) e 9.882/99 (Art. 10, § 3º).

Contudo, em nome da supremacia da Constituição e do papel fundamental de seu guardião, o STF vem decidindo pela eficácia objetiva do controle de constitucionalidade por ele exercido, ainda que no contexto de casos concretos.

Foi assim, por exemplo, no caso da fixação da interpretação constitucional do número de vereadores por Município (Art. 29, IV), decisão que se tomou inicialmente para declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela/SP (RE 197.917/SP, Reator Ministro Maurício Corrêa) e foi transformada em Resolução do Tribunal Superior Eleitoral que aplicou a todos os municípios brasileiros aquele entendimento (Resolução nº 21.702/2004), resolução que foi declarada constitucional no julgamento da ADIN nº 3.345 (Relator Ministro Celso de Mello).

O Ministro Gilmar Mendes tem sido, na Corte e na doutrina, a principal voz em defesa do que chama de eficácia objetiva ou transcendente do controle concreto de constitucionalidade.

Nos autos da Reclamação nº 4335, proposta pela Defensoria Pública da União em face de decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais de Rio Branco(AC), o Ministro Gilmar Mendes proferiu voto nesse sentido. Era preciso, porém, enfrentar a norma do inciso X do Art. 52 da Constituição, que atribui ao Senado Federal a competência privativa para “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. É ela que fundamenta a tese que até o momento prevalece, segundo a qual a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei em decisão definitiva do STF somente adquire efeitos erga omnes após a suspensão – discricionária – de sua execução pelo Senado Federal. Como sustentar então que a própria decisão do STF já é dotada da eficácia geral?

Daí a proposta apresentada na sessão de 01/02/2007 (embora já articulada em trabalho doutrinário ao menos desde o ano de 2004) pelo Ministro Gilmar Mendes. Sua posição é a de que a referida norma tornou-se obsoleta diante da evolução do controle de constitucionalidade brasileiro, sendo o caso de reconhecer verdadeira mutação constitucional. Assim, o seu significado atual seria o de atribuição de competência privativa do Senado Federal para tornar pública a decisão do STF que declare em definitivo a inconstitucionalidade de lei. Ou seja: mera competência burocrática, de atuar como órgão de publicação de decisão do STF.

Essa posição foi acompanhada pelo Ministro Eros Grau, com um sofisticado e bem construído discurso sobre interpretação enquanto mecanismo de criação da norma jurídica a partir do seu texto e a diferenciação desse processo daquele que ocorre com o reconhecimento da mutação constitucional.

Divergiram os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. O primeiro apresentou o forte fundamento de que o passo proposto seria uma grave ruptura do modelo de combinação dos sistemas de controle concentrado e difuso de constitucionalidade das leis, com participação do Poder Legislativo (o que é uma opção política constitucional adotada desde a Constituição de 1934). O STF reconhecer – por meio do que chamou de “decreto de mutação constitucional” – uma mudança de significado da norma que venha a fortalecer o seu poder e enfraquecer o poder legislativo poderia não estar dentro da moldura do Estado de Direito. Mais ainda: seria uma ruptura desnecessária, sobretudo diante dos novos mecanismos de jurisdição constitucional trazidos pela emenda constitucional nº 45/2004, em especial o da súmula vinculante. Assim, declarada incidentalmente a inconstitucionalidade de norma pelo STF, seria o caso de aguardar tomar mais uma ou duas decisões de mesmo teor, em outros casos concretos, e então aprovar, conforme facultado pelo Art. 103-A da Constituição, súmula vinculante expressamente reconhecedora da inconstitucionalidade apontada. Esse seria o modo lógico e adequado para a obtenção da eficácia erga omnes pretendida.

O Ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, acompanhou a dissidência iniciada com o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, agregando o entendimento de que a recalcitrância do cumprimento da decisão do STF, no caso, partira de órgão judicial de instância inferior, e não do Senado Federal. Logo, não haveria porque reagir com interpretação jurídica que esvaziasse a competência do Senado Federal.

Após, o Ministro Ricardo Lewandwoski pedira vistas dos autos.

E foi exatamente com o seu voto-vista que essa importante discussão foi retomada, na semana passada. O Ministro Ricardo Lewandowski acompanhou a divergência iniciada pelo Ministro Sepúlveda Pertence e também já acompanhada pelo Ministro Joaquim Barbosa. Para Ricardo Lewandowski, a nova interpretação proposta para a norma do inciso X do Art. 52 da Constituição levaria a um “significativo aviltamento” da tradicional competência do Senado Federal “no tocante ao controle de constitucionalidade, reduzindo o seu papel a mero órgão de divulgação das decisões do Supremo Tribunal Federal nesse campo”, o que seria inadmissível tendo em vista que traduziria restrição demasiada de competência que os constituintes de 1988 atribuíram ao Senado Federal de forma expressa. Corroborando o que já havia sido sustentado pelo Ministro Sepúlveda Pertence e citando doutrina de Jellinek, afirmou que suprimir competências de um Poder por via de interpretação constitucional coloca em risco a própria lógica do sistema de freios e contrapesos. Finalmente, acrescentou que a interpretação proposta não tem como prosperar, porque descabe cogitar-se de mutação constitucional, no caso, diante dos limites formais e materiais que a própria Constituição confere ao tema, eis que teria evidente tendência à abolição da claúsula pétrea da separação de poderes a restrição de competência privativa assinalada originalmente pela Constituição ao Senado Federal.

Após, o Ministro Teori Zavascki pediu vista dos autos.

Antecipo posicionamento pessoal no sentido de que o Ministro Gilmar Mendes exagera e muito na dose, com essa ousada proposta de que o STF dê seqüência às progressivas tendências normativas e jurisprudenciais que apontam para a excessiva concentração do poder de controle de constitucionalidade na própria Corte e redução do controle jurisdicional difuso de constitucionalidade a dimensões mínimas.

Tanto mais grave, no caso, como bem demonstrado pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, porque essa suposta mutação constitucional de competência privativa do Senado Federal (para deixar de ser competência privativa do Senado Federal de tomar a decisão política discricionária de suspender, ou não, a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF para se transformar em competência para atuar como cartório ou secretaria da Suprema Corte, cabendo-lhe tão somente providenciar os atos materiais necessários a dar publicidade à decisão do STF), partindo de interpretação do STF, que confere poderes a si próprio e limita ou até mesmo extingue poderes do Senado Federal, revela proximidade com golpe de estado institucional.

O curioso é que, nesse caso, não foi feito nenhum alarde no sentido de que o STF examina proposta de interpretação constitucional que restringe competências assinaladas pela Constituição ao Poder Legislativo, ao passo que amplia as suas próprias.

A ser conferido o mesmo tratamento que foi dado à PEC n° 33/2011 (confira aqui), deveríamos ter lido manchetes como “STF pretende transformar o Senado Federal em sua secretaria administrativa”, com desdobramentos que noticiassem que, a ser aprovada essa transformação, estaríamos diante de autêntico “golpe de estado”. E seriam manchetes/notícias baseadas em votos oficialmente proferidos por três Ministros do STF!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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