O debate radicalizado desde a agressiva campanha eleitoral está botando o Brasil pelo avesso. Isso pode ser bom. Mesmo quando falta ao debate a necessária seriedade, honestidade e profundidade, é bom que se discuta de tudo, desde as constitucionais cláusulas pétreas às notícias mais estapafúrdias, quando não mentirosas.
Uma discussão recorrente é sobre a ditadura militar que atrasou o Brasil por 21 anos e cujo golpe que a instituiu será mais uma vez motivo de comemoração pelos militares, neste 31 de março, agora com autorização expressa do presidente da República, o capitão paraquedista Jair Bolsonaro.
Há quem deseje a volta dos militares ao poder como solução para resolver a crônica crise social brasileira. Crise aprofundada pela falta de autoridade moral que, acreditam eles, os militares poderiam resgatar.
E há quem se apegue a uma figura de linguagem para defender que nunca houve ditadura no Brasil, mas sim “apenas” um regime militar. O argumento principal é que não existiu por aqui um ditador, como no Chile, mas cinco presidentes que se sucederam. Eufemismo, meu nome é ignorância!
Ditadura é o regime não democrático regido por uma pessoa ou por uma entidade política. O Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, classifica, segundo a natureza do poder, dois tipos de ditaduras: a ditadura totalitária (que emprega, além dos meios coercitivos tradicionais, o instrumento peculiar do partido único de massa, a exemplo da Alemanha nazista, da Rússia stalinista) e a ditadura autoritária, ou “simples”, que usa os meios tradicionais do poder coercitivo (exército, polícia, burocracia, magistratura). Este é o caso do Brasil de 1964 a 1985.
Se o país preservasse sua memória é provável que o conhecimento iluminasse a ignorância ainda pairante sobre períodos obscuros da nossa história, como a escravidão, o genocídio indígena e a própria ditadura, jamais a serem esquecidos.
Assim como há museus e memoriais do Holocausto pelo mundo a lembrar do massacre nazista às minorias sociais e étnicas, principalmente ao povo judeu, e há o Museu do Apartheid na África do Sul, não deixando esquecer como o ódio à cor da pele pode ser perigoso e nefasto, no Brasil deveria haver museus da escravidão, do genocídio indígena e da ditadura militar.
Iniciativas que ajudariam os jovens a crescerem vendo como o sangue de irmãos brasileiros manchou a nossa história. Para depois não saírem por aí se comportando como juventude transviada e alienada.
A ditadura militar, caro desinformado, não foi boa sob nenhum aspecto. Ela não foi mais branda do que outros regimes correlatos da América Latina. Aliás, foi tão sanguinária quanto. Por aqui, o governo torturou e matou presos políticos, muitos por simplesmente expressarem opiniões contrárias ao regime, como o jornalista Vladimir Herzog e o deputado federal Rubens Paiva. Hoje, apesar de tudo, há liberdade de expressão e se pode dizer o que quiser do governo.
Quem acha que na ditadura não havia corrupção no governo é porque não sabe nada da história. Governadores biônicos, nomeados pelo presidente de plantão, foram flagrados realizando negócios escusos com o Estado. Antônio Carlos Magalhães, na Bahia, beneficiou uma empresa chamada Magnesita, da qual era sócio. O governador paulista Paulo Maluf foi acusado de corrupção no caso conhecido como Lutfalla, uma empresa têxtil de sua mulher, Sylvia, que recebeu empréstimos do BNDES quando estava em processo de falência. As denúncias envolviam o ministro do Planejamento, Reis Velloso.
Os generais desfrutavam de mordomias, como mansões com piscinas térmicas, casas de veraneio, cabos e sargentos prestando serviços domésticos. O general linha dura Newton Cruz, acusado de mandar assassinar o jornalista Alexandre von Baumgarten, foi acusado de ser o principal envolvido no escândalo da Agropecuária Capemi, empresa dirigida por militares contratada para comercializar a madeira da região do futuro lago de Tucuruí.
Já em 1982, no estertor do regime, uma denúncia apontou que o Grupo Delfin, empresa privada de crédito imobiliário, foi beneficiado pelo governo por meio do Banco Nacional da Habitação ao obter Cr$ 70 bilhões para abater parte dos Cr$ 82 bilhões devidos ao banco. O valor total dos terrenos usados para a quitação era de apenas Cr$ 9 bilhões. A empresa faliu. A denúncia envolveu os nomes dos ministros Mário Andreazza (Interior), Ernane Galvêas (Fazenda) e Delfim Netto (Planejamento). Delfim já aparecera em outros escândalos de corrupção quando fora ministro da Fazenda dos presidentes Costa e Silva e Médici, inclusive para beneficiar a empreiteira Camargo Correia e o grupo Coroa-Brastel.
São só alguns exemplos.
Na economia, fala-se que o país cresceu graças ao milagre econômico promovido pelos militares. Mas o grande legado econômico do regime foi o aumento da dívida externa, que permaneceu impagável durante muitos anos depois da democratização. Quando a ditadura terminou em 1985, o Brasil devia a governos e bancos estrangeiros o equivalente a mais da metade do seu produto interno bruto. Seria o equivalente hoje a US$ 1,2 trilhão, ou seja, o quádruplo da atual dívida externa.
E se o bolo da economia cresceu não foi para beneficiar a todos. O regime militar piorou a distribuição de renda, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres: os 10% mais ricos, que tinham 38% da renda em 1960, chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois. E em pleno milagre, o salário mínimo representava a metade do poder de compra que tinha em 1960.
Além disso, a educação e a saúde pioraram e eram excludentes. O analfabetismo não diminuiu com o fracassado Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização, que veio substituir o eficiente método Paulo Freire, considerado “subversivo” porque ensinava o alfabetizando a pensar), enquanto o ensino privado cresceu. O acesso à saúde era restrito, porque o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica, da Previdência Social) só atendia aos trabalhadores formais. Resultado: prosperou a medicina privada.
Como se vê, caro ignorante, vai ter saudade de quê?