Neiirezhmjtpeu Ezwontzstro e o Sorriso de Vargas.

Um telegrama com o texto cifrado, “neiirezhmjtpeu ezwontzstro“, chegara ao Palácio Piratini, em fins de julho de 1929. O remetente era o então Deputado Federal rio-grandense, João Neves da Fontoura, e o destinatário, o Governador Getúlio Vargas. O texto, curioso, instigante e misterioso, significava apenas; “Vitória Certa”, tema tratado pelo excelente livro de Lira Neto, publicado em 2012 pela Companhia das Letras, “Getúlio, 1882-1930, Dos anos de formação à conquista do poder”. Um belo texto, a prender o leitor do começo ao fim.

Voltando ao telegrama cifrado e citado Por Lira Neto, ali continha o desfecho da aceitação por parte de João Pessoa, então Governador da Paraíba, da sua candidatura a Vice-Presidente da República, em chapa dissidente à quebra do acordo café com leite, que imperara nas primeiras décadas da República Brasileira.

Fontoura, velho amigo de Vargas, estava em desespero com a sua inércia em assumir o desafio de peitar a candidatura oficial ao Palácio das Águias, o Palácio do Catete, onde um Presidente rijo, autocrata e assaz ciente da sua autoridade, ousara conflitar aliados, ferindo acordos e regras, entornando mais café na política de partição do país com o queijo mineiro, impondo a Minas Gerais um candidato oriundo de São Paulo, o Governador Júlio Prestes de Albuquerque, nome de sua escolha pessoal, a gerar insatisfações e quebra da unidade dos partidos governistas.

A República Velha, ver-se ia bem logo, estaria a prenunciar os seus últimos suspiros, quando as armas e os espíritos não almejavam ainda a luta, nem a encenação do desforço e violência.

Bem ou mal, a cada quatro anos o país elegia os seus Presidentes sem traumas maiores. O eleitorado era pequeno, uma parcela menor da população tinha direito ao voto, com as mulheres excluídas, e a votação era aberta, às claras, cada um firmando o ônus da sua escolha, nos moldes positivistas de Auguste Comte, então uma religião de fé inabalável. “Toda escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica”, rezava assim um dos postulados da doutrina comtiana.

E a República nascera sobre a égide de Comte, afinal no exército, por firmeza e convicção hierárquica não podia viger a igualdade como pensaram as Revoluções Francesas, a de 1789, brutal em sangria frenética por terror, e a de 1848, que se caracterizara em maior horror, porque ensejara a anarquia, o socialismo irresponsável, em desordem e depredação.

O belo livro de Lira Neto

Ora, a República Brasileira fora proclamada numa quartelada, um desfile de tropa com a cavalaria simplesmente derrubando um regime que perdera o apoio das ruas e das classes abastadas; do clero ao exercito, do insubsistente empresariado nascente ao esclerosado e decadente segmento escravagista, tudo que representara o seu apoio, enquanto sacro e pouco santo império.

Mas a República, longe de parecer uma orgia de massas em veio libertário e democrático, chegava com um pensamento autoritário, rejeitando a descentralização parlamentar, que bem ou mal existia no regime derrubado, mesmo com uma excrescência bem aceita e jamais rejeitada do Poder Moderador do Imperador.

O império caía sem deixar saudade. O povo veria “bestificado” o grito de vivas à República, e com ele a consequente adoção do modelo americano de um principado eleito em regência provisória, para suprema rejeição de Eduardo Prado em sua obra esquecida “A Ilusão Americana”, o primeiro livro apreendido pela polícia, por declarado fora da lei, em 1893, pela nascente República brasileira.

Ora, no contexto das Províncias, como assim eram chamados os Estados brasileiros, vigorava uma polarização radical de ódios terríveis e disputas permanentes. Acirramentos que permaneceriam na República, sobretudo no Rio Grande do Sul onde as lutas travadas foram mais sangrentas, com degolas de parte a outra, e onde se dizia que a terra era vermelha, por tingimento de hemácias valerosas.

O facão amolado promovendo festivais de “gravatas vermelhas”, com o peão sacrificando o seu adversário vencido e amarrado, puxando-o de rés pelo cabelo e aplicando-lhe um corte profundo no pescoço, diametralmente de um lado ao outro, rasgando veias e artérias, era a mesma navalha que trinchava o bom e suculento churrasco.

No Rio Grande, por conta das divergências de fronteiras, as tais desavenças missioneiras, em luta contra portenhos, guaranis e paraguaios, e por pelejas travadas anteriormente como a Revolução Farroupilha, a Guerra dos Farrapos, última e maior insurgência contra o Império Brasileiro, bem como pelas resistências à nascente República com a Armada rebelada, as coxilhas presenciaram muita violência travada entre os Pica-Paus de Júlio de Castilhos e os Maragatos de Gaspar Silveira Martins.

No findante Império, o Rio Grande era dominado pelos liberais de Gaspar Silveira Martins, grande tribuno maragato, enquanto que Júlio de Castilhos era um dos primeiros conspiradores a favor da República, isso desde 1882, contra a proverbial legenda atribuída a Martins que, segundo os seus críticos dizia de si mesmo: No Rio Grande, “eu posso, eu quero, eu mando, eu chovo”. (LIRA, Neto. Getúlio, 1882-1930, Dos anos de Formação à conquista do poder. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 1ªed. P29)

A República entronizara o grupo de Júlio de Castilhos, os Pica-paus do Partido Republicano Rio-grandense, PRR , contra os comandados de Silveira Martins e Gumercindo Saraiva se refugiando no Uruguai, de lá retornando Maragato, como Partido Federalista, por conta da Revolta de mesmo nome enfrentada pela República da Espada, aquela da presidência dos Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.

Os nomes Maragato e Pica-paus derivavam de características nítidas. Os Pica-paus exibiam listas brancas na veste, usavam chapéu pontudo, nos moldes do pássaro, traziam lenço branco no pescoço, e o metralhar de suas armas parecia o retinir da bicorada daquela ave picotando a madeira.

Quanto aos Maragatos com seu lenço vermelho realçado no pescoço, o apelido ensejava um desprezo denotado ao forasteiro. Eram tidos como invasores imigrantes, vindos de além-fronteiras, do Uruguai, onde se tinham refugiado. Eram tidos como Maragateiros ou oriundos de Espanha, uma conotação de repulsa ao estrangeiro.

Os Federalistas Maragatos pregavam um regime parlamentar de governo com a reforma da constituição. Já os Pica-paus Castilhistas, implantaram com a República um governo forte, baseado nos princípios de Auguste Comte, afinal segundo Júlio de Castilhos, gaúcho de Cruz Alta e bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, “a sociedade precisava ser regida pelas mesmas leis e métodos da matemática e da biologia e o poder deveria decorrer do saber e não do voto”, defendendo inclusive uma “ditadura Científica”, com um “’executivo hipertrofiado’ que se auto investisse da ‘tarefa suprema’ de modernizar a sociedade, regenerar o Estado e educar os cidadãos para a vida em comum” (Idem p.37-38), tudo que hoje seria uma heresia pensar.

Getúlio, o tema de Lira Neto, nascera em 1882, ainda ouvindo o eco das batalhas da Guerra dos Farrapos onde lutara seu avô, Evaristo Vargas, que salvara a vida de Anita Garibaldi, companheira do louro Giuseppe, o “herói libertador de dois mundos”, e também seu pai na hostilidade mais recente, contra o inimigo invasor, na Guerra do Paraguai, cenário que restou hostil e raivoso em alvirrubra polaridade.

Ele era o terceiro filho do casal Manoel Vargas e Cândida Dornelles. O pai fora um vendedor de secos e molhados de Passo Fundo que entrou soldado na Guerra do Paraguai e lutando 21 combates foi sucessivamente promovido por bravura de praça a cabo, deste a furriel, daí a sargento, a alferes, a tenente, a capitão, sendo marcado por varias cicatrizes a lhe renderem fama bravia de medalhas militares obtidas em São Solano, em Tuiutí, vingando depois Tenente Coronel após Cerro Corá na derrocada derradeira de Solano Lopez e da Guerra do Paraguai, e que mais além atingiria o posto de Coronel e General de Brigada, promoções concedidas por Floriano Peixoto e Prudente de Morais. A mãe era filha do Major de Milícias Serafim Dornelles de descendência açoriana, estancieiro abonado de São Borja.

O casal teve cinco filhos, Viriato, Protásio, Getúlio, Espártaco, o Pataco, e Benjamin, o Bejo. Destes, Getúlio era uma criança frágil, já os outros, sobretudo Viriato se destacaria pela valentia, sendo matador desde jovem, submetido a vários processos, acusado de estuprar mulheres e violentos abusos. Acusações que solapavam a imagem de Getúlio um jovem calado, reflexivo e sorridente, vocacionado para os estudos, amante da leitura e adepto da conciliação.

Certa feita, em 1897, quando os irmãos Viriato, Protásio e Getúlio estudavam em Ouro Preto, a “Atenas Mineira” de então, Viriato envolvera-se numa briga com um jovem paulista de nome Carlos de Almeida Prado que cursava Direito. Da desavença, iniciada com uma discussão tola, aconteceu um tiroteio com Viriato, aluno de Farmácia, matando Prado num rumoroso caso, em acusações memoráveis, sobrando até para Getúlio, um jovem calmo, franzino e benquisto que aos quinze anos era uma criança em demanda a adolescência.

Do crime, sabe-se que Viriato conseguiu fugir do flagrante, escafeder-se para o Rio Grande e depois, muitos anos depois, conseguiu a absolvição ou despronúncia, algo que sempre foi uma constante na sua vida de valentão, ele que viria a ser intendente em São Borja, em substituição a seu pai, o velho General Manoel Vargas, por algumas décadas, onde traçou a fama de valentão estuprador, acobertado pela política dos Pica-paus.

Quanto a Getúlio, dotado de uma inteligência vivaz, um temperamento fleugmático, um sorriso enigmático de esfinge, especializara-se em fazer amigos, mimetizando-lhes a confiança, conquistando-lhes a liderança e a fidelidade num pensar positivista, pouco democrático e libertário, em viés que seria demonizado nos tempos atuais, por defensor da ordem e da disciplina.

O crime do irmão forçara a volta de todos ao Rio Grande. Ali, em 1898, Getúlio ingressaria no exército no 6º Batalhão de Infantaria, sendo colega de vários cadetes que se destacariam na tropa como Mascarenhas de Morais, Eurico Gaspar Dutra, Bertoldo Klinger e outros.

Na caserna, uma quebra de hierarquia aconteceu com um cadete desrespeitando um oficial. O desentendimento foi considerado uma “transgressão disciplinar”, gerando apoios e resistências pelo alunado. Uma assembleia convocada decidiu, por expressiva maioria a solidariedade com o cadete, pois a reprimenda recebida fora excessiva e injustificável. Reação que terminou com a punição de 129 alunos, sendo 31 expulsos e 98 presos. Getúlio que até então nada tivera com a crise, solidariza-se com o grupo punido e é expulso numa segunda lista. Extinguia-se ali a motivação de uma carreira militar. Ele não carregaria às costas, como seu pai e avô, o uniforme militar que lhes fora “uma segunda casca”.

Adquiriria uma outra veste, em maior brilho de verniz, agora na recém fundada Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre. O desligamento do exército, porém, não aconteceu naquele momento, embora o pedido já tivesse sido requerido. É convocado a lutar no Acre, onde havia uma perspectiva de luta contra os bolivianos, em socorro de Plácido de Castro, o patrono daquele território distante e inóspito, lá no fim do mundo.

Vai Getúlio para Corumbá, no Mato Grosso, para “matar ou morrer em nome da pátria”, um esforço que não restou sangria, afinal valera a inteligência e a diplomacia de Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco.

Se a luta não aconteceu, a farda foi despida, com o desligamento concedido com honra e bravia reconhecidas, saindo da tropa com admiradores e amigos, afinal como sargento denunciara o abandono da tropa à espera da luta que não acontecia, mediante textos que bem traduziam a ambiência, em fome, desabrigo e pestilência: “o abutre agoureiro da peste paira sobre a cabeça daqueles bravos, como um presságio sinistro… e o governo não pode sacrificar inutilmente a vida de filhos denodados devido à má direção causada pela vaidade ou inépcia de um homem”, onde até os enfermos dispensados por junta médica eram retidos no acampamento de Urucum, que virara um verdadeiro “matadouro”, sem trocar um tiro, só a esperar em abandono de intendência uma luta que não vinha.

Assim, quando o Tratado de Petrópolis aconteceu e as terras acreanas passaram a ser brasileiras, o Sargento Getúlio Vargas construíra em torno de si uma aura de liderança, correção e hombridade que ressoaria em eco verdadeiro e lendário, por onde passasse doravante.

Agora estava desvestido o uniforme, seria o acadêmico de Direito. Logo-logo, por contingências de família e coerência ideológica, ligar-se-ia profundamente ao pensamento castilhista vigente. Júlio de Castilhos havia morrido em profunda dispneia em 1903. Falecia como um valente repelindo o conselho de coragem de seu médico terminal: “Não preciso de coragem; é de ar que eu preciso!”

Seu sucessor, Antônio Augusto Borges de Medeiros, gaúcho de Caçapava do Sul (1863-1961), seria o grande líder rio-grandense na velha república, governando o Estado de 1898 a 1928, em reeleições sucessivas, a menos de um período, de 1908-1913, em que fora Vice-governador, tendo um seu preposto no governo.

Getúlio Vargas seria muito próximo de Borges de Medeiros. Saudaria como estudante a Borges e o presidente Afonso Pena na sua visita ao Rio Grande, oportunidade em que se ligou ao grande senador gaúcho, Pinheiro Machado, fazedor de presidentes, cujos amigos lhe abririam as portas no Rio de Janeiro, onde chegaria depois.

Ingressaria na política, elegendo-se Deputado Estadual e sendo o líder de Medeiros. Depois, por um desentendimento em que se manteve fiel aos seus aliados, renuncia ao mandato. Há uma espécie de esfriamento entre Borges de Medeiros e Getúlio, mas que é sanado rapidamente. Voltaria ao parlamento legislativo e logo estaria na Câmara Federal, onde se destacaria pelo espírito de concórdia e tolerância no governo Arthur Bernardes, pregando a anistia e o perdão da alma nacional. O país vivera os infaustos acontecimentos do Forte de Copacabana, e depois a Revolta tenentista de São Paulo, com a consequente Coluna Prestes, que se revelou fugidia e fugitiva, combatendo pouco e escapando mais, restara heroica por “invicta”, se escafedendo na Bolívia.

Neste tempo, o Deputado Getúlio volta a vestir a farda para combater os estertores daquela coluna revoltosa e outros entreveros maragatos contra a última reeleição de Borges de Medeiros. Ele, o combatente Getúlio, que após ajudar a expulsão dos revoltosos “invictos” estava agora com sua voz e argumento pregando a concórdia da alma nacional demandando a anistia para os revoltosos aos presidentes Arthur Bernardes e Washington Luís, perdão que não chegava com as cadeias entupidas de dissidentes, sobretudo no desterro da ilha de Trindade, onde estivera também o Tenente Augusto Maynard Gomes, o sergipano sublevador de 13 de julho de 1924, em eco revoltoso nas praias formosas de Aracaju.

Ora, se a anistia não veio, a chegada de Washington Luís se fazia com um convite a Getúlio para exercer o ministério da fazenda, assunto ao qual era neófito, um quase analfabeto. Mas, se ele não entendia de economia, em política sabia tudo. Do ministério sairia para o governo do Rio Grande do Sul, como candidato único à sucessão de Borges de Medeiros.

No palácio Piratini, a história o inseriu como o homem que topou a quebra da política do café com leite, tudo porque a intolerância de um presidente autoritário, como se caracterizara Washington Luís, quebrara o acordo entre a rubiácea paulista e o queijo de Minas.

Ora, na impossibilidade de uma república do “café com leite e pão”, isto é do café paulista, do leite minense e do trigo rio-grandense, tentada antes por Pinheiro Machado, eis que chegara, com o apoio do rejeitado Antônio Carlos de Andrada, o Presidente das alterosas mineiras, o chamado para a inserção do nome de Getúlio Vargas na eleição presidencial do país, numa aliança democrática contra os republicanos no poder.

Corria, portanto, o ano de 1929. Getúlio já estava casado desde 1910. Fora um casamento exclusivamente no civil em fiel cumprimento à fé positivista, a união de um Deputado maduro de 30 anos de idade, com uma quase-menina, Darci Sarmanho, filha de Antônio Sarmanho, estancieiro e comerciante, e de Alzira Lima Sarmanho.

Darci, que se pronunciava Dárci, tinha quinze anos apenas, só para consignar que naqueles tempos um casamento assim era um feito comum, bem previsto em lei e não constituía pedofilia.

No governo do Rio Grande, a família já chegava com cinco filhos: Lutero, o primeiro, para consignar o  acatolicismo de Getúlio, Getulinho, que morrera cedo, Alzira, Jandira e Manuel Sarmanho Vargas, (o Maneco) que cometeria suicídio, como seu pai, e também seu avô materno, Antônio Sarmanho, que reagira com um tiro no peito à desonra da falência.

Mas naquele julho de 1929 o telegrama misterioso estava a consubstanciar uma aliança com a Paraíba. O Presidente João Pessoa, consultando seu tio e mentor, o ex-presidente Epitácio Pessoa, obtivera a sua aprovação, para a empreitada difícil que se avizinhava.

O texto cifrado do telegrama; “neiirezhmjtpeu ezwontzstro“, desvendado seria “Vitória Certa”. Era o grito otimista e apaixonado do amigo de longas datas, João Neves da Fontoura, que se exasperava com a frieza de um Getúlio Vargas, reflexivo, sorridente e introspectivo, como uma esfinge em enigma e mistério.

No seu íntimo, o tempo diria depois, que a fruta amadurecia, apenas. Era preciso esperar, com paciência, o melhor tempo para a colheita.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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