O aniversário fúnebre da Constituição

Na semana passada, por ocasião do aniversário de vinte e oito anos da promulgação da “Constituição-Cidadã” de 05/10/1988, participamos de alguns eventos alusivos à data, e nos quais pudemos registrar a importância da reflexão aprofundada sobre a atual conjuntura, no que concerne à marcha galopante do retrocesso contra os propósitos democráticos da sociedade brasileira cravados no texto constitucional e em busca de concretização.

Com efeito, além de ter proporcionado a redemocratização formal do país após vinte e quatro anos de ditadura militar, a Constituição de 1988 é muito comemorada por diversos outros fatores porque, por exemplo: a) inverteu a lógica das constituições anteriores, ao tratar por primeiro dos princípios fundamentais e dos direitos fundamentais, para só em seguida cuidar da organização do estado e dos poderes; b) reconheceu expressamente em seu texto um enorme catálogo de direitos fundamentais, tantos os de índole individual, protetores da liberdade, como os de índole social, protetores da igualdade e os de índole coletivo-difusa, protetores da fraternidade; c) tem na dignidade da pessoa humana o fundamento maior da República.

Mas é exatamente sobre esse aspecto extremamente positivo da Constituição que se erguem, nesse momento, os mais duros ataques à sua normatividade.

O Estado Social Democrático de Direito – de que faz registro expresso o Art. 1º, caput e incisos – está em séria ameaça de extinção, antes mesmo de efetivar-se na dinâmica social, como se não bastasse a consumação do golpe institucional em 31 de agosto de 2016.

Senão vejamos.

No que se refere ao Estado de Direito, à proteção dos direitos fundamentais de liberdade, a escalada de medidas de exceção – que vêm se arrastando ao longo dos últimos vinte e cinco anos, tensionando contra a inteira consolidação de nosso processo de redemocratização pós-constituinte de 1987/1988 e avançando paulatinamente aproveitando-se das brechas ainda não supridas em nossa longa transição “lenta, gradual e segura” projetada pela ditadura militar – alcança expressa fundamentação em acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Para esse Tribunal, à exceção do Desembargador Rogério Favreto, a investigação/apuração e os processos de combate à corrupção legitimam medidas que abertamente contrariam as garantias constitucionais individuais (cláusulas pétreas da Constituição) do devido processo legal, a exemplo da violação do sigilo de comunicações telefônicas. Não é diferente com o Supremo Tribunal Federal que, por seis votos a cinco, atuando como usurpador do poder constituinte originário do povo, altera o sentido da garantia constitucional da presunção da não culpabilidade senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para decidir como válida a execução da pena de prisão mesmo que a condenação ainda não seja definitiva.

Quanto aos direitos fundamentais sociais e econômicos, a conjuntura de grave ameaça e retrocesso não é menor. O ambiente político é de extrema preparação para mais e mais retrocessos em direitos sociais. Fala-se abertamente em flexibilização dos direitos trabalhistas e da CLT, terceirização da atividade-fim, aumento da jornada de trabalho, extinção da Justiça do Trabalho, restrição de acesso a direitos previdenciários, prevalência do negociado sobre o legislado inclusive para reduzir as garantias do mínimo legal, tudo no contexto de um retorno intenso e profundo da linha ideológica do receituário neoliberal que levou à crise global de 2008 e cujos reflexos são sentidos no mundo inteiro até os dias de hoje: juros altos, austeridade fiscal, corte de gastos e de investimentos sociais, que resultam em benefícios exclusivos para o mercado financeiro.

A porta aberta dessa avalanche contra os direitos sociais foi a aprovação na madrugada da terça-feira, 11/10/2016, em primeiro turno, pela Câmara dos Deputados, por 366 votos a favor (eram necessários 308), da PEC nº 241/2016, a “PEC do Retrocesso Social”, que congela os investimentos públicos (tomando como referência as despesas realizadas em 2016, com atualização anual apenas pela variação do INPC) por vinte anos, mediante a imposição de um limite de gastos individualizado por Poderes e órgãos, e exclui a garantia constitucional de gastos mínimos da receita com educação e saúde.

Se aprovada nas demais etapas até promulgação, a PEC nº 241/2016 significará que congelaremos por vinte anos os investimentos nas políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos sociais e nos serviços públicos, comprometendo a educação, saúde, previdência, assistência social, moradia etc. Na linha contrária à implementação progressiva dos direitos sociais, econômicos e culturais, tal como o Estado brasileiro se comprometeu ao firmar o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Parte II – Art. 2º: “ Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”), a eventual aprovação definitiva da PEC nº 241/2016 traduzirá o rompimento com o Estado Social, antes mesmo de sua razoável efetivação.

Infelizmente, a conjuntura também não é nada favorável no que se refere aos direitos fundamentais de fraternidade. A despeito de a Constituição formal indicar os objetivos fundamentais da construção de uma sociedade solidária, a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e ditar os caminhos de medidas legislativas e políticas públicas de inclusão social e comunitária, tendo como fundamento maior o princípio da dignidade da pessoa humana, estamos assistindo a terríveis momentos de intolerância contra minorias, aumento significativo de práticas discriminatórias de toda ordem, fomento reacionário do discurso do ódio inclusive com incitamento à violência.

No aniversário de vinte e oito anos da Constituição, nada a comemorar.

Nesse dificílimo cenário, não há outra alternativa para combater esse enorme retrocesso: a luta, que deve ser contínua e constante, convergindo atuação social e manifestações públicas com política institucional, objetivando impedir a definitiva derrocada da Constituição-Cidadã do Estado Social Democrático de Direito de 1988.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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